quarta-feira, 20 de março de 2024

Seda & Sedado, A Maneira Que Quero Estar

"Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente." - Paul Auster

Já vi vi os dois lados agora: a expectativa e a retrospectiva. Se tiveres sorte, chega a existir alguma coisa pelo meio. Uma por uma - com uma excepção - toda a gente te vai desiludir e vai haver menos gente para te desiludir porque não vai haver gente. Quando conseguires e eu consegui o feito de desiludir primeiro quem nunca me desiludiu. Arruína o cérebro mais bonito da história da humanidade com a ruína do teu.

Saca-lhe a beleza da visão, saca-lhe o fácil sorriso automático pelo qual te encantaste. Espalha o cancro que és. Lentamente aceitas que tens de te afastar de quem se afastou porque te afastaste primeiro e que a ordem dos turnos importa zero. Deixá-la reexistir sem o cancro. Até que... portanto, uma por uma, não vai haver gente. Contigo incluído. Ninguém te vai desiludir mais do que tu a ti mesmo. A tua própria vida. Sem mãos, agência, desagente. Excepto o teu estúpido cérebro. Porque de volta ao básico, à solidão da tua configuração padrão, aí vem mais uma golfada de incomunicabilidade. E estes, demasiados acontecimentos na pele, já não são os teus tempos. Fardo, gasto, resignas-te a ver tudo acontecer por um televisor.

Tentas pôr uma cara de apatia por cima da cara de horror. Sempre foste um pro nisso. Antítese da asquerosa invencibilidade de rei do recreio, tornas-te tão pequeno dentro de ti com um mundo tão grande engolido durante anos. Decrescer por crescer. Minguar até seres um verme. Um por um, os momentos, o mundo, chau. Aqui vamos nós outra vez, a tentar fingir que uma pessoa importante nunca existiu… ou pelo menos a sua importância. E aí encontro o meu slogan existencial: seda & sedado, a maneira que quero estar. Como uma almofada, à deriva, suavemente a sonhar. Aquele relance antes e depois do sono, a melhor parte do dia-a-dia. Eis o princípio a seguir: minimizar o sofrimento, o hedonismo possível. Atarefares-te tanto de trabalho e hobbies que passas o dia sem pensar, aterras no sono sem pesar. É esse o sonho. Agora. Fazer montes de coisas para não enlouquecer. O sonho dos tristes e quebrados. O meu. Sonho tanto com ele, a forma sem conteúdo! Estado de fluxo versão drone humano. Passar pelos movimentos, autómato sem dor ou sofrimento, o que (já não) tens agora nem interessa.

Ou talvez, pelo contrário, só importando isso. Quando tão sovado por tudo começas a olhar para qualquer ser humano, para o espelho e já não consegues ver mais que a intermitência de reptilianos a comerem-se e destruírem-se uns aos outros enquanto fingem que não…  seda & sedado, a maneira que quero estar. Estar tão morto e indiferente que recrio a ficção de esperança por não pensar nela, na sua perda. Afinal de contas, não foi por isso que ela pôde existir em miúdo? Por doce ignorância?

O problema é… aquele relance depois do sono, antes da realidade se instalar… passar. A mente a refocar-se nos inputs sensórios à volta dela. Angústia e às cabazadas, demasiada bagagem, uma derrocada e comer pedras. Puxar a cara da almofada para a memória de ti na cama onde devias estar. O início repentino e um fim como se nunca tivesse havido nada. Como a vida. Começar a desmanchar-me todo por dentro, dissoluto, ansioso, deprimido. A perda. As nossas fotos, os nossos vídeos, a nossa rotina. Pensamentos flashes de demasiado. À minha volta sob a forma da sua falta. Luto. Sentir isto a morrer e a morrer e a morrer sem fim. Sem uma mensagem mágica, uma voz surreal que de facto voltasse tudo ao que era. Mas não conseguir esconder os meus pensamentos de mim, odiar-me no revisionismo, à procura de sinais de quando e onde começou a falhar, se calhar desde o início e nunca tudo foi assim tão especial. Odiar-me a mim mesmo a conspurcar essa memória do mais bonito que me aconteceu, um sentir seda sem estar sedado, a coisa mais próxima do paraíso, as expectativas que sempre sonhei. Ao mesmo tempo, nada me dar mais náuseas que aquela ideia feita tão terapeuticamente certa de esquecer ao aprender a ver o que de bom aconteceu. Ainda assim, ainda que nem sempre, tiveste o melhor de mim, e o melhor que eu dei a alguém. Além de que eu juro, egoísmos mesquinhos de reptiliano à parte, só queria que agora voltasses a ficar bem, mesmo que longe.

Mas últimos meses com vários dias a bater no fundo, sei agora pela última e derradeira vez que não existe para sempre nem mortes fora. Não pode existir o que eu acreditava existir-me aqui e agora… E depois tento fechar este texto, mas lembro-me que este ano vou comer nêsperas sem ti. As merdas mais simples, mais mundanas, mais belas, mais cruas a atravessarem-me a dor de consciência. Dói-me onde não existo, preso na sala de espera da vida. Uma maldição à espera de acabar. A envelhecer. Velho e decrépito como um regresso antecipado à terra natal.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

30

Tem sido isto: dias multiplicados em faz 5 anos daquilo e disto. Mas já nunca é 6, vai tudo a oito e quando reviro a cara (para me refocar no pensamento) contar dois dígitos desde tudo o que importou às vezes 25, um quarteirão. Estou tão perdido aí, à frente do fantasma de bairro nenhum: o que resta do meu tudo. Nada.
 
Se eu tentar fugir, se eu correr - e já não corro como dantes - só fica mais rápido e mais alto, o volume do desaparecimento. O grito do horror disso. "Em que ano estamos?"... a sucumbir em que dano estamos. Em joelhos de quase trinta. Então as minhas memórias tão tão maiores de idade que a vitimarem-me em atropelamento e fuga, a viver as suas próprias vidas longe do carrasco do meu corpo. Tornámo-nos dois: o infantil, o juvenil, tudo o que definiu de um lado, e do outro isto. O horror na pele, o eu que não consegue reconhecer o que raio aconteceu (ao tempo, ao espaço, às pessoas, ao corpo...) senão enquanto outro. Um maldito monstro desficcional, carne e cru.

Talvez uma maneira estranha de o dizer seja que, enquanto criança, enquanto adolescente não imaginava, figurava, nem sequer conceptualizava que ser velho não acabava. Os teus avós... enquanto sobrevivem... os velhos ficam mais velhos. Mais e mais dentro deles mesmos, próteses, muletas, solidão, cadeiras de rodas, camas, dores, cérebros fodidos, sem memórias. De volta à terra. Não morres simplesmente. Vais morrendo... mais velho. Os teus pais tornam-se os novos velhos, tu tornas-te (quase) as primeiras memórias que tiveste dos teus pais. Trintas. Por tão simples e óbvio que seja, acho que só computei, senti isto pela primeira vez em 2015, aos 21. E acho que só porque pela primeira vez entrava na parte do filme da minha própria decadência física. Olhos piscados para 2023, a cena decadente continua a adensar-se e aterroriza porque, anos de chocolate e anos de aventura gorados, eu ainda só estou de volta à Terra... com T grande. De volta do espaço, do cósmico, de viagens sensoriais interestelares. De volta ao planeta. 

E é de noite. É de noite no bairro nenhum deste texto. E custa-me explicar. Já nem tenho a certeza que me importe explicar. O bairro, a noite, o nenhum. São graus de incomunicabilidade comigo lentamente, progressivamente a aceitá-los. O horror corre foge. Porque tentar comunicar-me a alguém tornou-se outra palavra para impossível. E como comunicar o incomunicável sem me afundar no regresso? Sem precisar sempre sempre sempre de uma nova palavra para explicar uma palavra anterior? Metros, metros e mais metros a caminhar no bairro nocturno nenhum. Chegado aqui na vida, estou cansado, soporífero demais para empilhar metros. De água ou subterrâneo, tão surreal aqui em baixo, aqui dentro; cada vez mais eu menos tu. Mas também um eu feito de falta de eu. Como acordar durante a noite confuso com a orientação do corpo no espaço. Confundir a cama, a casa, o rectângulo de escuridão menos escuro que vem do corredor. Confundir tudo com o que o hábito ainda sabe de cor do eu original. Porque eu sou só a sua variação.

E é então que saio pela porta de entrada e… E é de noite no bairro nenhum deste texto. Onde tão distante só já parece possível comunicar comigo, para a minha infância e a minha juventude me lerem. Um esoterismo tão peripatético quanto patético. Talvez porque em 5 dias vou fazer 30 anos e dizer para dentro que a minha juventude oficialmente acabou, precisava de lhe escrever isto. Um balanço, ainda não sei bem. Um casting do paradoxo; às apalpadelas no escuro até que, formigueiro farol de habituação nos olhos, as coisas ganhem a sua forma de mito… pela via de palavras incertas.

A verdade é que nunca projectei a sério ter mais que 20 anos. 20s que fossem, os 29 eram o limite do concebível e tudo o que viesse a seguir um longo, lento e longínquo declínio. Tudo o que fosse melhor de acontecer, tudo o que fosse de novo e, acima de tudo, tudo o que fosse marcante aconteceria até aos 30. Os 30 esse grande divisor, por mais que ciente que por muita endoutrinação cultural e dos média; que não acordas um dia magicamente diferente, velho e acabado por causa de um artifício mental, uma data num calendário. Na realidade, as coisas aconteceram-me mais cedo, cedo demais. Primeiro, um trauma fílmico a despoletar um surto de hipocondria e medo da morte aos 9. Depois acessos de nostalgia infantil e medo do envelhecimento aos 14. Desde aí: frequentemente imerso em cálculos mentais diários e ridículos sobre há quantos anos foi x; em que ano terei metade da idade de y; decorar anos de nascimento de inúmeras pessoas; notar em que lugar alguém estava ou o que tinha feito com determinada idade; recordar aniversários de sentimentos ou até acontecimentos banais; ruminar na diferença perceptiva entre dois quaisquer intervalos temporais iguais (e.g., 2003-2009 e 2012-2018). 

Mas mais do que as neuroses dos 9 ou dos 14, os meus 20s foram os meus 30s. E se bem que mentalmente me sinta mais conformado (o que é, talvez, mais triste do que bom), por outro lado assusta o que está por vir. O adensamento, porquanto começo a ter, de facto, idade disso, de cair. Os danos físicos, a desagência de um carro biológico a pisar-me e repisar-me até aos ossos perguntando-me sádico se “está pior assim?”. Chegou a um ponto em que aprecio doenças agudas como gripes (se e) para gozar o seu período de convalescença, a hoje rara sensação de sentir o corpo melhorar. Masoquismo. Porque desde 2015 a uma média de cada par de anos vem mais um esguicho de dor ou limitação crónica. Olhos, costas, maxilar, estômago, joelho, enfim… Sobretudo estes ossos e articulações de um corpo dos trezentos! Que perante isto não tenha nada activamente a matar-me só é contentamento e não irrelevante para os grandes altruístas desta vida (o espécime mais perfeito tende a possuir liderar outros corpos no seu local de trabalho em nome do bem-comum) com os seus humildes Jogos Olímpicos do sofrimento. Pois dentro da minha pequena, única e irrepetível vida, era uma vez um miúdo plasticina, agilidade, velocidade, facilidade motora que adorava desporto, correr, jogar futebol. Alguma avaria sucedia e em pouco tempo estava como novo. E de repente isto: 20 e poucos com ardores aqui, fraquezas ali, rigidez articular acolá. Membros exaustos com sensação de atropelamento ao fim de um normal dia de rotina fora de casa. Ultrapassar crises, encontrar novos equilíbrios só para surgir outro problema, ponto fraco, desequilíbrio.

Do miúdo total que não tinha nada para esta merda, este caco. Tão rápido, cedo e eu não lidei nada nada nada bem com isso. Em qualquer balanço que faça da minha vida eu vou sempre lamentar e incompreender os meus vintes num corpo de velho antecipado. Por esta altura já estou cansado do cansaço que me causa o quão expectável é mais uma degradação para a lista. É já amanhã? Bolas, como tudo perde progressivamente valor, potencial e expressão por causa da mesma cápsula mortal que as criou primeiro… É essa a radiância invencível que, somente agora à distância, vejo de perto numa criança saudável. Torcer, pino, cambalhotas, saltar, girar, correr, gatinhar, cair. Plasticina. O momento antes da perda. O corpo progressivamente a melhorar antes da irrecuperável perda do miúdo total. A chorar para, espontaneidade, sorrir no minuto a seguir. Seres de dentes de leite com anos de chocolate. Mas adiante, a saúde física é só a maneira mais aceitável porque incontrolável – não escolha individual/social de exploradores – em que vi vivi a minha juventude sugada antes do tempo.

À frente do fantasma de bairro nenhum e não sei onde vou. Caminho para onde cheira a quando me apeava do autocarro. Voltar da escola. Andar entre o fumo e as luzes da noite no Outono. Às vezes os fones. Bandas e canções preferidas. São e salvo, em paz com uma angústia adolescente infinita. A snifar anjos da pulsação do ar. Algo eterno e mitológico nessa imagem a repetir-se-me em perda e acho que talvez por isto: a sensação que mesmo quando o dia acabava, o mês de Setembro – com todo o seu renovado potencial de aventura, romance, diversão e epicidade banal – nunca iria não voltar. Era eu em versão personagem televisiva, a novidade na terceira pessoa do impossível que um dia poderia ser. Ser eu sem agora precisar de escrever este texto, ser eu sem estar à frente do fantasma de bairro nenhum. A não saber onde vou mas a saber que preciso de sair; que onde estou não estou e tenho de me ir resgatar. Um louco dissociativo em versão acabada.   

Aporia pelo nocturno fora e os meus dias de há uns (d)anos para cá têm sabor de epílogo. Desistência, desexistência. Desisti de tudo (ou estou a desistir do que falta desistir) e amanhã aí vem a maior golfada de nada. 30! É como se alguém me chamasse do andar de baixo para ir comer e eu dissesse que “Vou já. Só estou a aprender a morrer”. a terra. As linhas na testa das paredes, a maçaneta da porta a chiar, os brinquedos quebrados, empoeirados e encaixotados, a loiça gasta. O palhaço desvanecido da minha caneca de infância. Os simulacros da ruína que a casa onde cresci vai ser. Ou já é, de certo modo. O horror na pele de quem habita estes espaços e objectos. Comigo a vê-lo ao espelho. Trintas. Pai e mãe. A minha primeira visão deles. Pai e mãe a tornarem-se fantasmas do que agora vejo em mim. E fico a perguntar-me se a coisa flui assim: as pessoas tornam-se pais para se verem crianças outra vez; e se os seus filhos se tornam pais, tornam-se avós para verem outra vez o filho que não viram da primeira vez. Sempre este lapso, atraso temporal. Dói onde? Dói no quando da projecção e da comparação de uma doença chamada empatia.   

Mas não há paredes, fronteiras que cheguem para nada disto. Quem está no polidesportivo, quem está na paragem de autocarro, quem passa pelas ruas por onde voltava da escola, eu já nunca sei. Não conhecer ninguém. A minha idade foi-se embora com todas as pessoas que também já não estão aqui. Ali. Na tTerra onde cresci até lhe flutuar antigravítico. Então, começo a lembrar-me também do que sempre fiz. A viver vicário em séries, filmes, música, videojogos, livros, desporto. A experiência desses interesses a entrarem em mim na mesma medida em que eu precisava de sair. Donde quer que estivesse. Seco, vazio, entorpecido, alienado, humilhado, esmagado. Sem amigos e com todo o funcionalismo hierárquico diário normalizado à minha disposição. Inquestionável, desimaginado por omissão opressiva de alternativas; a construir uma jaula invisível delimitada na silhueta do meu próprio corpo. De qualquer maneira, esse viver vicário nunca me foi sobre a sua versão celebrar a celebridade (que começa no simples salivar o autógrafo do deus cujo hipotético conhecer faz derreter); sempre sobre injectar-me com outros universos estéticos/passionais. Veias vias vidas possíveis, milhentos quarteirões delas a dinamitarem becos existenciais. No entanto, ao longo da última década deram-se dois fenómenos:

a)  a incapacidade destes choques de adrenalina fazerem frente ou sequer atenuarem significativamente as crises de dores, limitações e o meu consequente abatimento psicológico. Idem quando a tal se aliou perceber e viver um status quo de assédio pessoal-institucional, os períodos mais depressivos disso em que não conseguia fazer nada senão sentir raiva misturada com angústia. Tudo ao ponto de quase ignorar álbuns recentes de eternas bandas preferidas ou de nem me aproximar de objectos estéticos no geral;

b)   o meu próprio entorpecimento, falta de disponibilidade emocional perante obras ou experiências novas. Como se comparado com o peso formativo, definitório e definitivo do passado – a conexão artística com anos e anos de algumas das minhas memórias mais queridas – a novidade se afigurasse quase sempre e cada vez mais menor, réplica, repetição…

Saudades… Daquela sensação de descoberta à medida que me embrenhava numa prática artística, num género, num hobby. A música, o pop-punk, os blink-182 e os Foo Fighters aos 13; as séries televisivas e o cinema, os thrillers psicológicos no Verão de 2009 aos 15. Com Lost e o Fight Club à cabeça. E antes que desse por isso quais patas de aranha internéticas a levarem-me a tantas obras, humores, narrativas, ambiências, psicosferas. O relatável que não encontrava no cru e gélido mundano na idade em que ganhava mundo interior e me começava a sentir pessoa. Única, irrepetível, sozinha. Sidekick de ninguém, protagonista do meu quarto habitado noites adentro. As janelas semi-abertas entre frechas de persianas. Silêncio ou grilos, soavam símiles. O cheiro da relva molhada. Cada ser humano na sua cápsula inconsciente, o mundo funcionalista em pausa e eu a preencher o vazio. Aprender a viver noctívago em ecrãs porque sentia a minha angústia adolescente minimizada durante a noite camaleão como os meus sentidos indefinidos. Mais que tudo, o bairro nenhum deste texto ainda ficava mais no futuro. E em retrospectiva isto é tão inefavelmente tudo. Estas recordações, dane-se! Pelo que em retrospectiva, eu posso mesmo dizer: eu tive uma angústia feliz. Por mais que esfoladas, eu tive uma infância e uma adolescência felizes. Sempre este lapso, atraso temporal. 

Só que não sempre. Os últimos anos também trouxeram em boa dose períodos, momentos que sou incapaz de romantizar. A raiva, a angústia, a revolta, a perplexidade; todos os sinónimos insuficientes do mundo a engolirem-me. E eis que a própria memória se desliga; sentir inteiros blocos de tempo fora do espaço, fora do tempo, fora de mim. Bloqueados como se não fizessem ou não devessem ter feito parte da minha existência (outros momentos… e pessoas… demasiado dentro, que recordo demasiado bem). A saúde, sim, claro. Mas sobretudo a universidade. Até os mais calmos, distantes (e a certa altura já nostálgicos) tempos de licenciatura retroactivamente contaminados por este cancro. Que apaga sem apagar. Se o que vivi fosse a sério mas não foi logo não foi assédio, é a isto que chamam trauma? 

Enfim, falava eu de interesses e, então, o que mais? Ora, apesar de cada vez menos, houve o que se afirmasse enquanto favorito sob o peso de outras obras com uma nostalgia avassaladora. Na música, a Phoebe Bridgers e o seu álbum Punisher (2020): o som quieto e ecoante para a letra tão vulnerável, às vezes surreal com um poder imagético brutal. Mais um autocatastrofismo tingido de sarcasmo. Também adorei um par de novos álbuns de favoritos de longa data como blink-182 (Nine) e The National (I Am Easy To Find). No caso de blink-182, aliás, o empolgamento para um álbum com a formação clássica da banda já em Outubro tem me devolvido um pouco os 18 anos e o início do meu 12.º ano. Noutro campo, tão bom o ataque modo pastilha-elástica (na forma e no tema) a uma lógica de boas-maneiras e violência asseadinha no filme Daisies (1966). Em termos de séries, a maneira como Mr. Robot foi tão frenética e melancólica em concomitância. Os enquadramentos, os ângulos de câmara inortodoxos, oblíquos ou nas margens perfeitos para o isolamento urbano e tecnológico das personagens. Neon Genesis Evangelion e a análise egóica de um adolescente disfarçada apocalipticamente de combates entre robôs gigantes. No geral, há ainda fases em que consigo reavivar fases! Fogachos de motivação interna por um género e período, por exemplo. Nos últimos dois anos, e.g., aconteceu com filmes de gangsters. Aconteceu voltar ao meu ponto de partida cinematográficos dos thrillers psicológicos e de mindfucks.

E bem, a década dos 20 aos 30 foi pelo menos a década em que me dediquei mais a sério a ler. Aquela em que descobri o meu escritor e livro preferido: Bruno Schulz; o conjunto de contos As Lojas de Canela, de 1934 (Sanatório Sob o Signo da Clepsidra, 1937, não fica muito atrás). Através de uma prosa barroca, com acessos de metáforas e metamorfoses surrealizantes, o narrador-protagonista numa autobiografia mitologizada da sua mundanidade, de episódios cristalizados da infância e adolescência. A plasticina do miúdo total. Experienciar tamanha proximidade que, sintomático, tematicamente, vai dar a isto, aqui e agora. À minha necessidade de tactear à noite no bairro nenhum deste texto cujos quarteirões passados caminho. Ali está… A essência dos jornais desportivos que ia comprar à papelaria quando tinha 10 anos. As ilustrações cravadas na retina sei lá como quando abro um velho livro de infância.

E já aos 26, também uma era de renascimento dos videojogos em mim. Se após a omnipresença em criança (a começar com o Pokémon Azul no dia em que fiz 7 anos; quer a ver jogar, quer a jogar) e muita intermitência adolescente até aos 15 estes quase sumiram, desde 2020 boom! Algumas das piores situações tinham acabado de ocorrer. *Inserir aqui a especificidade de situações censuradas porque difamatórias porque lesam o bom nome da instituição e do senhor que tanto a serve*. Sentir o cérebro sugado por sociopatas muito letrados e muito bem formados – perceber de uma vez por todas que sucesso é isso. Legitimação para possuir e chantagear outros sob a ficção da idoneidade e da responsabilidade. Chamar-lhe ética do cuidado e colaboração. Chamar-lhe não ser egoísta, chamar-lhe não ser eu. Isto. Nunca existiu, nunca houve e às vezes à noite no bairro nenhum quero cair de joelhos até ficar sem joelhos, desaparecer da face da terra. Que se lixe o corpo, que se lixe a memória, que se lixe eu. Nunca existiu. Nunca escolhi. Não poder simplesmente dormir… e então congelo. À espera de nada, nada e depois nada. (Enquanto aprendo que “houve pessoas aqui que sofreram a sério” enquanto quem o diz estende a boca à mesma fonte de assédio. O poder. O poder em bruto. Não a metafísica quantitativa do abuso de poder.) Os videojogos renascidos algures aí. Única memória e agência durante meses sem inteiros blocos de tempo na cabeça. Máquinas de pingar nostalgia, e às vezes ajudarem-me a ficar melhor num longo e vacilante intervalo de reconstrução, fazer sentido diferente do que me vendaram ao vender e do que me venderam ao vendar. Ser preciso decrescer para lhes ter o nojo e ódio necessário (ódio, sim!). Cargos, idoneidade, essa pessoa-estrutura. Porque é o inverso do que construíram os seus mitos de grandeza: aquilo que não se faz começa por importar muito mais do que aquilo que se faz. A indiferença contra a qual tanto se clama – o cliché disso – está contida na atenção minuciosa de construir uma diferença hierárquica com a justificação de que contra a indiferença.

Mas – suspiro interpenetrado nesses “joguinhos de poder inevitáveis”, consoante os explicaria a douta autopreservação de um essencialismo sociológico deveras consternado com um qualquer feio, inestético, deselegante, mau, totalmente evitável essencialismo biológico – os videojogos. A variabilidade sem costuras do Half-Life 2 e uma aproximação a first-person shooters de modo lato; o Portal 2. Estar selado e isolado nesses puzzles de ambiente clínico-industrial com humor negro randómico à mistura. Consola retro, os gráficos bidimensionalizados com a cara da minha infância; os 16 bits hipnóticos de outro mundo na banda sonora do Super Metroid. A maneira como a jogabilidade e a estética desses meados dos anos 90 me remete para uma atmosfera de quietude, pequena-escala, intimidade, talvez porquanto pré-internética. À semelhança do que ocorre com a literatura, ainda sinto uma relativa maleabilidade em termos de favoritos nos videojogos por faltar tanto que quero (ou queria) muito experimentar (porreiro ter esses dois horizontes voltados para o futuro). Entre 2020 e 2021, houve inclusive um belo período de descoberta análogo à minha aproximação musical aos 13, cinematográfica aos 15. Constatar listas, géneros, recomendações, evoluções históricas, plataformas e definir “obrigatórios de jogar” de uma maneira que criança ou adolescente nunca fiz. E esse simples entusiasmo recuperado a cifrar-se no que de melhor me sucedeu nos últimos 10 anos.

Se eu olhar suficientemente no fundo do bairro nenhum a rua parece um museu pueril. Ali estou eu, sentado na sala, quase 7 da manhã à espera do início de emissão para ver os desenhos animados preferidos. Depois a taça de cereais, chocolate ou mel. Os meus brinquedos… isto tudo tudo tatuado tudo, a acumulação de eus perdidos para os confins da galáxia. Ficar sinceramente a achar que o problema não é blá blá blá o tempo voa, a vida é curta. Antes se torna longa, decrépita, ao chegares aos 20 acumulado de eventos, coisas, bagagem, traumas, prazeres, pessoas, nostalgia, humilhações só para ruíres a partir daí. Dentes gastos sem anos de chocolate. Mais veres quem gostas ruir primeiro ou contigo e cada vez mais seguro de que sim. 20 ou 20 e tal anos sem curva descendente chegavam bem e melhor. Caminhar, caminhar, tactear uma bola na aporia nocturna.

Futebol! O que raio aconteceu? Como é que uma prática quase diária dos 7 até aos 20 anos desapareceu tão definitiva e globalmente da minha vida? Junto com escrever, jogar futebol foi a única actividade para que tive e (terei) algum talento na vida. Não ressinto as oportunidades que tive de levar o futebol mais a sério conforme me garantiram que iria ressentir mais tarde. Nem um milímetro. Abstraindo-me do próprio elitismo e concentração obscena de recursos do costume, eu nunca senti que tivesse qualidade para ir além da divisão nacional mais baixa (e isso no absoluto máximo dos máximos). Tal como nunca quereria estar numa situação na qual me percebesse inferior, incapaz, invisível (para isso sempre me tive a mim mesmo). Aquilo que de facto ressinto consistiu e consiste na impossibilidade de continuar as circunstâncias óptimas que me levaram a permanecer 7 anos num clube. O ambiente familiar e divertido com as pessoas que sempre conheci a acreditarem em mim e eu apto a ser decisivo. Isso e ressentir que com outra persistência mental, mais algum treino poderia ter dado um pulo qualitativo no meio em que estava inserido. Depois ir para a universidade, mudar de casa, chegar aos seniores fosse como fosse e não sentir nem espaço, nem conforto, nem capacidade. Perder todas as circunstâncias óptimas. Até que restou o hábito esporádico de jogar futebol entre colegas de curso e de o reintensificar ao voltar a casa num par de Verões. Até que 2015 um pouco e em 2017, fosse como fosse x2, com 23 anos e uns meses já me tinha perdido para a podridão do meu impróprio corpo. Creio que, entretanto, cheguei a estar 5 anos sem tocar numa bola de futebol. O meu eu infantil e juvenil não acreditaria! Se tiver essa bola nos pés agora, o prazer vem junto com o desapontamento de ter acabado embotado de uma dimensão existencial tão estruturante para mim. Idem para correr. Se quando cheguei à universidade isso fez a vez regular e intensificada perdida do futebol, por iguais motivos físicos em 2015 já parara de estar confortável para correr.

Desde há muito, fiquei, portanto, reduzido a acompanhar o Benfica, esse outro entretenimento passional que vem da infância e tão inconsciente, inexplicável que nunca vou saber porquê. Quer dizer, jamais conseguirei explicá-lo como justificaria esteticamente uma canção preferida, por exemplo. Conquanto ache que esse interesse só me foi e é possível por um semelhante elemento de jogo imersivo, quadro ficcional para lá do repulsivo substrato institucional. Também aqui não consigo deixar de olhar e ver fantasmas: há um Benfica original entre 2002 e 2003, um treinador, jogadores em específico do meu tempo de o (re)conhecer primeiro, como se tudo o que o sucedesse fosse uma variação falsificada desse original. Pouco importa que tenha sido uma fase sombria no que toca a resultados. E um pouco o mesmo em modalidades que não o futebol – mais que antes, o interesse existe mediante seja o Benfica “em campo”. Pese embora o ciclismo e, sobremaneira, o ténis que costumava seguir em miúdo na televisão tenham tido uma ressurgência inesperada em mim nos últimos 5 anos.

Enfim, o horror na pele e por esta altura já o horror neste texto nenhum, patético e peripatético que a minha sensação de perda me obrigou a escrever. 30 e tudo. Deambular. Constatar que, sem ser o futebol e a corrida, o meu círculo de gostos e hábitos pouco se alterou desde meados da adolescência. Reparar que com a carga dos últimos anos em cima tornou-se-me ainda mais fácil, espécie de predisposição, cair num nada ataráxico. Razão pela qual, em reacção, tenho tentado alargar o espectro de acções ou hobbies – de plantas a jogos de tabuleiro a viagens. Os primeiros dois casos sem grande (com)sequência. Mas como um rato doméstico sempiterno, nos últimos dois anos o vazio e o tiquetaque dos 30 lá me levaram a alguns locais há bastante desejados. O Parque Natural do Gerês (para o eu que adora floresta e montanha, expectava e cumpriu-se o sítio perfeito), Sintra (algo pendente desde uma nostálgica mas insuficiente visita de estudo no secundário), ver o Benfica no Estádio da Luz (quase bizarro que somente agora!). Sem imprevistos, também o concerto dos blink-182 em Lisboa dentro de uns dias (a minha banda preferida a partir dos 13 anos e apenas o meu segundo concerto em termos absolutos).

Portanto, viajar enquanto algo inexplorado, apontado ao futuro, para ir fazendo esporadicamente. Acho que, no fundo, eu a tentar lentificar o tempo como mandam os manuais da percepção: introduzindo experiências, elementos novos. Mas não consigo evitar a sensação de que estou a forçar criar uma ficção em vez de ela existir por natura tal e qual existia. Como se agora estivesse preso na fábrica da realidade e não houvesse estrada à noite que não há nem bairro nenhum. Sem precisar de querer cair de joelhos até ficar sem joelhos, porque a Terra e a terra desapareceram da minha face. E aqui estou eu assoberbado, passado a ferro pelo passado. Um carro ao lado a arrancar, eu congelado a ver tudo ir embora dentro de uma loucura demasiado sana. E não há faróis vermelhos numa recta com aragem, não há luzes melancólicas em cedência num céu a servir tangerina em bandeja, não há um rapaz a cortar cebolas no arrebol secundário entre plátanos suburbanos. Não há canções, não há filmes, não há sonhos. Não há ninguém para me vir buscar porque “já passou e vai ficar tudo bem”. Precisamente porque já passou. Repeti “vida” demasiadas vezes e entrei em saciação semântica. Depois repeti “saciação semântica” demasiadas vezes e saí de qualquer saída. 

E depois, mas e depois, e às vezes, poucas cada vez mais poucas vezes, eu caminho. Porque caminho literalmente cada vez mais e longo. Esse sim, hábito novo. Muito menos acontecia antes… Uma hiperatenção aos espaços, ao horizonte, aos ambientes mentais, aos prédios, às pedras, às árvores, ao piso, a todas as coisas pequenas em que reparo, aos passos de uma vida cindida em dois. Em dois quando saí de casa para a universidade e sem cerimónia de destruição um dia três anos depois voltei já não havia casa. Só o fantasma da minha terra de infância e adolescência perante o cru do meu corpo quebrado. Adeus, quarto crescente. E eis porque comecei a caminhar literalmente. Para simular, percorrer o acto da perda que nunca vi. Até me achar tão perdido aí, no caminho não literal que o caminhar literalmente me atalha, à frente do fantasma de bairro nenhum: o que resta do meu tudo. Nada. E consigo querer chorar, querer escrever isto, sentir que ainda resta um pouco de mim ao ver como as coisas mudaram com o passar do tempo. Sem ser só passar o tempo.

Acessos de memórias, error impele horror na pele: herror. Trinta! Mas às vezes mais que herror andar, andar, andar e angústia infinita, o caminho à frente, algo na ponta da língua a tocar na linha do horizonte. Como chegar aos portões de um paraíso sem dono, entrar nas bordas do artifício, a silhueta da loucura e encontrar mais que um mundo situado nas possibilidades do passado enquanto único deus; paz, mais que desejos não cumpridos. Entrar para sair, caminhar literal para chegar ao não literal do bairro nenhum, e depois isto. Isto é o que fica para além da noite no bairro nenhum: sou uma criança num trilho num bosque de dia. E entretanto não sei. Se a sou. Algo incrivelmente familiar, aquele algo na ponta da língua e por intuição eu passo a ter a certeza. A certeza toda, patética metempsicose peripatética, que estou a viver um antes de ter nascido; que esta é uma memória da vida única, irrepetível e pequena de outra pessoa que veio e foi. Estranha e num bosque, apenas em error impele fulgor na pele. Pelo que então deve ser isso que este lugar transfronteiriço é: qual mundo-espelho de um conto cautelar, o antes de ter nascido as memórias de outra pessoa, uma criança que ainda não me tem. A mim que sou a perda mas a própria razão que recoloca a criança em movimento e vida. As suas brilhantes sensações novas, a sua diegese irrepetível, o seu universo estético único. Eu com bolhas de iridescência em vez de olhos numa transmissão atmosférica do seu intransmissível. E por intuição, chorar, sorrir esse cosmos-morfema; saber que um dia vou voltar a ser criança de alguém. Sem que nada, nada disto tenha que ver um pingo que seja com tutelas, grandes feitos, lideranças empáticas, heróis sagrados ou seculares a pisarem o chão com o poder macio do céu porque se apoiam nos sapatos dos outros: “esmagados, dessolados, a desigualdade não passará!”. Nada! Nem sequer o escarro polido dos escravos com cargos cujo “mestre é o subalterno” a co-colocarem-se só a meio dos sapatos dos outros.

Eu. Eu drogado, esotérico da única ilusão que existe: eu. Eu entre outros eus. A epifania do mundo-espelho de um conto cautelar a desvanecer-se e fica comigo, todavia, um pouco de caminhar à noite em bairro algum. São esses raros instantes em que ainda pulso empolgamento, dinamismo, ainda há um vestígio de flutuar acima da Terra longe da terra. Ver futuros, não estar sequer certo que não haja anjos por snifar de uma outra, nova idade de ouro a ser vivida no presente. As piadas internas com a T. que por esta altura já davam uma enciclopédia; as nossas longas caminhadas por Coimbra e arredores; à beira-rio: estarmos sentados a conversar no Parque Verde durante o Verão; divertimo-nos a ver (e rever) os (mesmos) cães e gatos; conhecer uma cidade de cor, sentir-me em casa nesse espaço enorme como só me senti nas quatros paredes da casa onde cresci; comermos juntos o conforto e sabor telepático que uma banal refeição a dois consegue muitas vezes ser; o nosso cinema a partir dos sofás e todas as variações/recorrências temáticas ou de género, como quando transferimos os nossos medos maiores em anestesiantes filmes de terror; poder trabalhar a partir de casa, longe (mesmo que só fisicamente) de “reinos de senhor”, e escrever a minha tese noite adentro. O quão especial e significativo é escrevê-la para mim depois do pesadelo dos últimos anos. Mesclado com o quão assustador, perturbador e desafiante, vê-la tornar-se num Godzilla, um monstro expressivo do que me fizeram a mim. Prometer-me que um dia entre todos os bloqueios, manipulações e chantagens - e não me importa que socialmente insignificante -, hei de explodir isto com espinha dorsal cá para fora. Nem que me expluda com isto também. Enfim e sem fim neste texto e na cabeça volta sempre… o medo, o nojo, o desespero ao pensar em fraudes tais que aprenderem a capitalizar com voz terna o próprio estigma face à saúde mental. Mais insano que isto, há?

Mas o algures algo iridescente do mundo-espelho em mim, fui vou resistindo, reequilibrando-me quedas sem conta na rotina. Agarrar-me ao sorriso tímido daquela que é talvez a rotina mais feliz da minha vida inteira, sem necessidade de encantos nostálgicos. Ao mesmo tempo, vem o medo que essa rotina acabe, o medo a agarrar-me a mim… Porque ok, sim, antes: respirar canções preferidas via fones nas viagens de autocarro entre casa e escola. Os filmes, as séries, a referida descoberta. Não existir mais nada senão o momento e a determinação quando começava mais um jogo de futebol ao fim-de-semana. Os hábitos tornados pequenos rituais, encharcar-me de água antes do apito inicial, os pacotes de açúcar ao intervalo, usar as mesmas caneleiras leves ad aeternum. Acabava um jogo vinha outro, acabava uma época vinha outra. O polidesportivo, os meus gatos, os colegas de turma ou de clube porreiros comigo, a magia outonal com aroma a pulseira rosa do meu único relacionamento amoroso, as paixonetas invisíveis, a constância de algumas dessas caras, aprender a exprimir-me e personalizar-me em chats, redes sociais, aqui no blog.  

Mas a maior parte do tempo antes: a escola um lugar inóspito donde estava desesperado por sair desde que acordava nauseado e sonolento com a ideia de ir para lá. A minha ansiedade social, complexos brutais com a aparência, a lógica da lei do mais forte e do mais velho no recreio (que agora bem vejo de onde vinha…), eu mesmo ter sido um idiota conivente ou participante. Usar alguém que gostava de mim e de quem gostei antes por uma amálgama de vingança mesquinha e autoprotecção emocional. Sentir-me profundamente só e desconectado por mais que gostasse de passar muito tempo sozinho. Ir abaixo, achar-me inútil ao cubo, um poio ambulante quando o futebol me corria mal. Aproximar-me de pessoas que se aproximavam de mim ao ponto de parecermos amigos: acabar usado para preencher espaço e logo depois deitado fora. As precisas paixonetas invisíveis, em simultâneo do que mais lamento por ter vivido a intensidade passional daqueles anos num quase nada. A distância impossível para a realidade do meu vago sonho mediático, cinematográfico de um grupo de amigos inseparáveis a produzir eternidade numa casa na árvore. Contar, cortar os dias do calendário até às férias nos cadernos durante as aulas, pois a saída era o futuro, o futuro era a saída.

Chegar à universidade com um certo entusiasmo de mudança e melhoria, embora já demasiado desgastado e inseguro no que tocava a relações interpessoais. Ter orientado e bem todo o meu percurso para a única esfera em que tinha jeito: escrita e artes, essa junção. Como nunca, adorar a maior parte das aulas per se. Desde o início gostar da autonomia, fixe e necessária a possibilidade de a desenvolver. Porém a obsessão generalizada com praxes; colegas mais tempo separados porque sem grades da escola; as muitas pessoas que naquele período já tinham um círculo social mais ou menos definido. Tudo artificial, forçado, mentiroso. Não conseguir fingir, nunca consegui fingir a sério ou quando muito a minha versão dessas gentilezas quotidianas foi e é desaparecer, afogar-me a arder no pano de fundo. Meros meses passados de Setembro de 2012, sentir fechado no quarto o desespero solitário da escola em esteróides e quantas vezes, abominável homem do gelo, já nem conseguir chorar. Situar-me ainda mais sozinho se fora do quarto: festas, jantares, cafés, conversas de corredor. Hipersensível em grupos, conferir incontrolável um peso planetário ao mínimo gesto alheio; doer-me no cotovelo a faca verde de possibilidades impossíveis à minha frente. Começar a temer, a sério e primeira vez, que não havia saída para o futuro, que ia haver um bairro nocturno nenhum. Cedo amanhã.

Em suma, não se trata de uma questão sistemática de olhar para trás e considerar que devia ter feito x ou não ter feito y. Não porque agi de acordo com o que sabia na altura, mas porque na maior parte das situações estava em causa uma desconexão emocional, desencontro de interesses ou uma incompreensão de convenções sociais que jamais se resolveriam com ditames best-sellers à maneira de “tem iniciativa”, “sê mais aberto”. Ademais, pelo menos a partir dos 15/16 - havendo vontade recíproca -, sempre me conheci capaz de ser vulnerável com quem puxasse o assunto ou se aproximasse de mim. E, ademais do ademais, sempre tive o pingo de noção de não despejar os meus problemas (até porque de cariz emocional) em cima de alguém. Afinal, este blog serviu desde 2009 para arquitectar tal saco de autopancada. Para ser rigoroso, passada mais de uma década, com altos e baixos, com todas as dificuldades de distância física e contextual, até me mantenho amigo da pessoa de quem mais estreito fui no secundário. Algo que valorizo bastante, mas com o tempo - e isso manifestou-se muito doloroso, uma forma de desistência - aprendi a permanecer sem expectativas nessa e em qualquer outra relação.  

Excepto uma. A T. O impossível. Com todo o risco que isso acarreta, ficas tão próximo de alguém, tão próximo em intensidade, constância e prolongamento que já não dá para destrinçar o “eu” do “ela” sem um apocalipse interno, identitário, perceptivo. Como se pela primeira vez na vida escolhesses (a cravagem da) família nuclear. E a T. o impossível porquê? Setembro de 2014, 21, terceiro e último ano de licenciatura. Chegado aí eu já me entendia irremediavelmente sozinho no mundo. Para além de todo o contexto escolar e universitário que tracei, estes antecedentes mais directos: Fevereiro de 2014, calhar-me uma tampa bem calculista quando gostei de alguém a sério pela primeira vez em anos (e arrisquei expor-me inédito em todo o sempre). Do género “dar bola, elogiar-te e iniciar conversas fora de um contexto físico comum quando nem sequer quero que sejas meu amigo porque já percebi que gostas de mim e simplesmente aprecio a atenção, que se lixe que isto te vá magoar”.

Agora encaro com nostalgia e um certo apreço aquilo a que esse episódio acabou por levar. A começar pela própria maneira bonita como me sentia profundamente aberto, vulnerável; ir ver o Her sozinho ao cinema uma semana depois; os dias de me repensar enquanto indivíduo, pedir desculpa a quem inflingira a mencionada “vingança mesquinha” e acabarmos por retomar contacto via mensagens; a ambiência ao descobrir Red House Painters. Deus, o pôr do sol dissoluto da “Grace Cathedral Park”… Só que naquele então de Fevereiro, in loco, quebrei de vez. Tremores, falta de apetite, a incompreensão suprema com a instrumentalização alheia (nem eu sonhava o que estava por me ser presenteado em termos institucionais). Tentar chegar tarde, cortar nos intervalos e corredores, sem poder evitar o contexto partilhado das aulas. Fora isso, eu estava-me irreconhecível ao ponto de, em detrimento de me apetecer estar sozinho, me palpitar uma urgência frequente em sair de casa, procurar contacto físico interpessoal, envolver-me em actividades extracurriculares…

Se durante a escola tinham existido caras comuns, vários colegas por quem ainda hoje guardo carinho, a solução Universidade revelara-se um deserto, um nada insignificante absoluto. Assim, creio que para mim aquele acontecimento não tinha sido o som da rejeição de humano x, tinha sido o som de ficar sozinho para sempre após uma última chance. No geral, durante a licenciatura houve longos períodos em que não devo ter dirigido uma palavra a ninguém senão a familiares. Aguentando-me nas notas excelentes e volvida uma relativa recuperação nas férias de Verão, lembro-me com vividez de regressar a Coimbra em Setembro de 2014 e desatar a chorar. Pressentir, ressentir um lugar que associava a toxicidade, não querer nunca mais estar ali sozinho. Depois era um pouco isto na minha cabeça: mais um ano para concluir, focar-me nos estudos e voltar a casa. Porém, eis o impossível – cujo relato fui sempre evitando neste blog por uma certa e sintomática desnecessidade emocional; e porquanto não pareceria o impossível sem esta longa narrativa de origem.

Uma mesma cadeira opcional escolhida, um conjunto de acasos, ficarmos sozinhos à beira da porta da sala errada. Entretanto, da minha parte, fora esse primeiro episódio, muitas reticências em sequer conversarmos. Um interregno, mas logo em Outubro encontrarmo-nos a caminho de casa, descobrirmos que vivíamos na mesma rua. Começarmos a falar a partir daí. Trocarmos mensagens. Um trabalho que requeria uma ida ao cinema. Irmos os dois. Jantarmos no shopping. Eu achava que algo estava a acontecer e ao mesmo tempo sentia-me estúpido, a caminho de uma réplica de Fevereiro de 2014. Abrir-se um pretexto, uma brecha emocional ao falarmos, contar-lhe tudo e ficar um caco. Depois passarmos a noite na rua numa conversa melancólica que mudou a minha vida para sempre. Acordar num baile de hesitações e inseguranças. Ir ter à tua porta, vires ter à minha, diários sairmos siderados os dois. Contudo, em poucos dias, semanas tudo com uma fluidez e imediatez impossível. Tempos livres, interesses, estudos, refeições, casa, piadas, problemas, caminhadas, rotina. Os primórdios da ROTINA! A T. T de tudo. Tudo juntos. Setembro de 2014 a tornar-se irónico, Coimbra progressivamente a fazer-se o espaço mais importante e reconhecível da minha existência. Casa.

Conforme indicado, desde algures no secundário que sabia ter essa capacidade de partilha e intimidade em mim, mas, dane-se, senti-la sempiternamente embotada, inútil... Depois de chofre isto! Isto a compensar por toda a angústia, sonhos, solidão, desperdícios de um fantasma… Redescobrir-me recíproco no universo inteiro de outrem. Hoje continuo convencido que se não tivesse conhecido a T. em concreto não ia conhecer nem relacionar-me com ninguém a este nível. De tal maneira que a respeito de verdadeiro contacto humano nada mudou: o dito amigo da escola à parte, do presente já nem restam conhecidos, caras comuns, colegas, carinho. E eu estou de bem com isso. Há 9 anos. Nunca mais senti aquela desesperante solidão infinita que tomara conta de mim aos 19/20, mas que já vinha em crescendo desde que ganhara consciência de mim no despertar da adolescência. Um estar de bem com isso também ciente de que se por algum motivo a T. sair da equação, o fantasma de outro tipo de bairro nenhum volta em fuga (embora eu julgue que voltaria em fuga agradecido ao universo indiferente, com uma certa serenidade de realização). No fundo, aceito e quero a fragilidade e a (inter)dependência de viver com isso.

E não estou a tentar vender a perfeição, o paraíso de desencontros e discussões inabolíveis desde o princípio. Eu mesmo acho que vou ter sempre aqui um certo lado de lobo solitário moldado à maneira de como cresci e adolesci. Às vezes não ajuda, não sou fácil de tão frágil que sou. De qualquer maneira, fiquemos com isto: a T. inventou haver nocturno num bairro total. E perante toda a merda inevitável de saúde e perante toda a merda evitável da universidade, foi a única pessoa que amparou tudo. Sabendo que o pior do inevitável e do evitável está para vir. Imutavelmente, a pessoa mais importante da minha vida.

 ***

E eu bem gostava de terminar este texto patético com a frase acima. Lamento, não dá. Tal como logo em 2015 a decadência física batia à porta ou em 2017 sentia os primeiros indícios do submundo académico, eu circulo de novo para o bairro nenhum deste texto. Cheguei aos 30 - dia 21 de Setembro de 2023 - enquanto escrevia este post. Atravessei todas aquelas músicas tocantes com títulos de idades que só podia conjugar no futuro. Só ter 16 e a “23” dos Jimmy Eat World: “You’ll sit alone forever if you wait for the right time / What are you hoping for? / I’m here, I’m now, Im ready / Holding on tight / Don’t give away the end / The one thing that stays mine. Ter 20 e nada e a “Twenty One” dos The Cranberries: “I don’t think it’s going to happen anymore / You took my thoughts from me, now I want nothing more”. Não poder reter os 20 e a “24” dos Red House Painters: “So its not loaded stadiums or ballparks / And were not kids on swingsets on the blacktop / And I thought at fifteen that Id have it down by sixteen / And twenty-four keeps breathing in my face / Like a mad whore”. Perplexo pelos 28 e a “29” de Gin Blossoms: “Only time will tell / If wishing wells / Will bring us anything / Fade like scenes / From childhood dreams / Forgotten memories”. Ainda a “21” de The Starting Line ou a “26” de Paramore. Boa parte dessas letras a relatarem tanto conflitos internos agora resolvidos quanto o atropelamento e fuga do tempo. Atado à T., o meu eixo existencial deixara de ser procurar inutilmente uma sensação de segurança e eternidade em relacionamentos interpessoais. Ou de, perante um vazio nesse departamento, ter em obras, objectos estéticos d’outrem um deslocamento vicário de melhores amigos impossíveis.

Então, à medida que eu interiorizo a minha decadência física antecipada como um processo de anulação, amputação da expressão corporal e como uma questão de aprender sucessivamente a existir com contentamento numa prisão mais apertada, outro eixo existencial. O entorpecimento entranhado da escola enquanto lugar inóspito a provir desentorpecido e estranhado das traseiras da mente para mostrar o fundamento hierárquico e “bullyesco” de relações de tutela de adultos para adultos. O porquê de ser inóspito, um urgir jorrar os calhaus que meteram na minha água. Bem-vindo à lógica da lei do mais forte para impedir a lógica da lei do mais forte! Assim, desta maneira: primeiro garanto a superioridade, define-se que ganhei. Depois, aconchegado na polícia, no exército e nos tribunais que me a defendem, defendo a paz e a democracia em que podes (semi-)escolher a decisão tomada de escolher líderes que vão escolher por ti.

Assim assim assim, estar deveras consternado com as grandes questões do nosso tempo. O clima, o machismo, a pobreza, o racismo, o idadismo, o neoliberalismo! Oh deus, tanta injustiça no mundo para usar, manter o meu poder para benefício dos mais frágeis e oprimidos (até me podem aumentar os impostos que escondem que sou beneficiado a priori, qual plano-poupança da norma). Assim assim, ser a vantagem empedernida de um papa e dizer que “o único momento em que é lícito olhar alguém de cima para baixo é para o ajudar a levantar” sem que tal se trate de um programa de humor. Assim assim, nós ao contrário de “inserir partido ou ala x” não usamos o poder para benefício próprio, motivações egoístas e corruptas. Contra as pessoas más que não estão à altura da sua posição, chama-se bem-comum o desígnio que nos chama!

O meu jorro, queda de água, atrela-me num desviozinho para a universidade. Os tais essencialismos sociológicos: uns toques foucaultianos de o “poder está em todo o lado” ou uns pós spivakianos de a “ideologia não é um véu que se possa descobrir pelo que precisamos de uma revolução lenta da imaginação” em que se lixe dizer que dessarte posso eternizar a imprescindível prevalência das minhas condições materiais catedráticas que tanto beneficiam a humanidade. Até porque, recorde-se, o “subalterno é o meu mestre” e há inclusive quem – distância irónica jogue ao toca e foge com a brilhância da sua autoconsciência: “reconheço que sou privilegiado”. Reconheço que sou e tenho a lata de continuar a ser até porque vai se a ver tu também és porque isto tem que ver com categorias discriminatórios históricas (e.g., viver no ocidente) e não com agências específicas que controlam corpos alheios e o seu acesso aos recursos no aqui e agora.

Nada nunca posto assim, nos termos em que existe já sem palavras (porque vivemos num estado de direito, as regras são iguais para todos… consoante o estrato): nós defendemos o nosso direito hierárquico a definir quem tem emprego, a definir quem e como te podes exprimir, a definir a tua inferioridade relativa à nossa superioridade. Afogado em pedras, aqui estou eu(?), de foco em sufoco narrativo, continuando à espera dessa descrição fenomenológica. Sem se acenar a bandeirinha de que outros fariam igual; que se trata de uma matéria de conhecimento e a exclusão deve-se a motivos técnicos, de adequação; não temos nada de pessoal contra si (que se foda que seja exclusão na mesma e que seja eu a exercê-la). Ou ou ou… a cartada do conhecimento científico contra o populismo e os anti-intelectuais – dizem os amantes da democracia que a preferem bem passada com molho de elite; dizem os supremacistas filantropos que fazem de “intelectual” uma designação estatutária de génio em vez de um mero tipo de actividade ou trabalho. Mas mas mas, escute pessoa que tem de amadurecer para ser como nós ou continuar nosso servo (se não quiser ser mestre para mudar as [suas] coisas por dentro ninguém lhe faz mal desde que aceite a sua condição de servo com que lhe fazem mal; pode, aliás e ainda, recorrer às instituições que ordenam a sua condição de servo para propor que os mestres que deixariam de ser mestres sem si ponham termo à sua condição de servo), escute:

as contradições fazem parte da condição humana e das sociedades complexas, jogar com elas é um sinal de inteligência. Algumas dessas ideias são muito perigosas (ok, mas para quem?) nos tempos que correm, precisamos de salvar o planeta em nome das (eternamente, que jeito dão) gerações futuras. Chore-me só um rio por este clima! Vê? Não consegue chorá-lo! Pode ter razão num ou noutro ponto, mas o seu pensamento culminaria num vazio de poder que poderia ser aproveitado pela extrema-direita que anda aí fora (dentro das nossas instituições democráticas). A história – e é importante nunca esquecer o holocausto, o colonialismo, a escravatura, mas não tanto como afirmar que é importante nunca os esquecer, pois vivemos um grave problema de falta de memória histórica em tempos de pós-verdade, inteligência artificial, bolhas de customização algorítmica e corporações demasiado poderosas que estão a minar a democracia que a todas, todes e todos serve – mostra-nos a facilidade perigosa de levar o povo pouco letrado a acreditar em soluções fáceis. Cultos de personalidade imagine só! Pelo que felizmente temos Sua Santidade, o Magnífico Reitor, Sua Majestade, Sua Excelência o Primeiro-Ministro e a Senhora Professora Doutora para combater esses cultos de personalidade. Já Karl Popper dizia e é bem actual que se tolerarmos os intolerantes estes dominar-nos-ão. O paradoxo da intolerância, acabar-se-ia a tolerância! Sem nós, os violentos com força e liberdade para escravizarem os fracos! Em último recurso, como a cara pessoa imatura está assim um pouco para o extremista e radical, sugiro-lhe cortar parte do seu texto (os progressistas com poder sobre ti amam apenas sugerir, diga-se). De seguida, escale em reapropriação um governo mal ocupado. Aí, a favor da confiança contra o medo, proclame moderada: A.C.A.B.-se com a violência! O Estado é a nossa providência!” (a.k.a. emule um abolicionista... da mudança que ama violações sem mãos).

(O meu corpo, o meu espaço, o meu tempo, o meu eu desaparece do texto vomitado para dentro de alguém a ser alguém na vida.) Pessoa imatura, o que propõe? (perguntam enquanto agem o roubo da possibilidade de existir o que propões, porque no fundo a pergunta é mais o que propões dentro de ficar tudo na mesma na minha tutela só representativa nada que ver com trela.). É contra a democracia? As instituições são importantes! Isso seria anarquismo (entra em cena o momento argumentativo em que afirmar a léria de um rótulo substitui qualquer descrição de relações materiais no aqui e agora). Está a ser totalitário, está demasiado preso ideologicamente (faz de conta que não entra em cena a prisão muda do meu princípio de autoridade que, sejamos sérios, tão benévolo se afirma que define os limites do meu poder a pensar na garantia plural de que órgãos homólogos possam exercer o seu poder na porta ao lado; ademais, revela-se deveras importante enrijecer muito bem legalmente o que constitui ou não abuso até para efeitos de autopreservação do que constitui o abuso como se fosse uma questão metafísica de fita métrica). No nosso regime menos mau de todos (não se pode exigir perfeição) os que já foram tentados (mais uma vez vá lá estudar história), há separação de poderes entre quem o tem. Pluralidade. E se não gostares deste órgão, podes recorrer a outro, é como os empregos, cada um é livre de trabalhar ou não com quem quiser tal como cada um é livre de te empregar ou desempregar dentro das regras de o poder fazer (se não gostares cria o teu!) até te excluírem de tudo e te deixares morrer à fome porque recusas subir mas também recusas descer para fazer mais broches; se o governo for constituído por pessoas boas nem chegas a morrer à fome porque, caridade, a pobreza é um flagelo e as estatísticas devem acompanhar a média da OCDE.

Há aí, em algumas das suas palavras, insinuações difamatórias, atentados à honra e ao bom nome (para eles terem bom, eu não tenho nenhum). Demando um julgamento justo, todos somos inocentes até prova em contrário e esse constitui um pilar das nossas sociedades civilizadas e avançadas. Portanto, vou processá-lo, acredito na justiça e nas instâncias competentes que em sexo tântrico imaculada concepção com o poder legislativo definiram e definem todos os santos dias (às vezes o papa e o papá amnistiam) toda a minha vantagem social para que nós os dois – eu e a minha instituição contra você – possamos ter um julgamento de igualdade perante a lei. Deveria ter enveredado por outro caminho. Do género: citar preocupada e indignadamante estudos com revisão por pares, avaliação científica que comprovam que os mais pobres são mais pobres e sofreram mais por isso. Ou então de género: vivemos num patriarcado em que os homens instrumentalizaram uma definição identitária para circunscrever lugares de poder e exploração reprodutiva noutros corpos, a começar por mulheres, inclusive na família enquanto instituição. Já pensou em reduzir o patriarcado a uma pila ou quanto muito a desconstruir esse essencialismo num simples ser também conservador de direita, dizer coisas sem elegância, falar alto e mandar arrotos? Assim assim assim, poderia chegar ao limite do eticamente discutível nas grandes mudanças sociais que estão a ocorrer no nosso tempo. Destila o homem do patriarcado - a pessoa das próprias condições materiais que construiu para justificar oprimir outrem - e faz de conta que uma plena igualdade estatística entre identidades colectivas em cargos de poder/liderança (qual tokenismo anti-tokenista) é uma grande conquista social não resumida a umas mulheres com direito a oprimir outras mulheres, homens e o que quer que possa imaginar (se calhar, só muito se calhar, convinha explodir com a fixação de géneros).

Faça também de conta que 1) as mulheres com poder não se tornaram homens a fingirem ser mulheres (no máximo, queixe-se de um feminismo liberal usurpador, marcando a enorme diferença entre a CEO exploradora e a Senhora Professora Doutora dadora); 2) os homens sensíveis cuja masculinidade retrógrada está em desconstrução são aliados que de maneira alguma são homens que se mantiveram homens a fingirem ser mulheres. Por último, 3) sugiro defender o enrijecimento legal de um terceiro género contra os papéis e policiamento de género (é fulcral definir quem é trans a sério!), colocando ume enebê num lugar de poder para cessar com qualquer alegação negativa similar às do ponto 1) e 2) pois tal alegação teria um fundo transfóbico. Caso alguém lhe aponte essa falsa instrumentalização de mau tom sarcástico, afirme firme “reparação histórica! Não à cegueira de género que quer bloquear a mudança! Uma por todas, todas por uma”. Saiba usar o interseccionalismo (contra as antiquadas narrativas mestras) em seu proveito porque eu até posso ser uma mulher com poder mas sou negra, logo está equilibrado porque a identidade é múltipla e complexa, logo vá educar-se sobre a matéria. Pode tentar com outras identidades historicamente discriminadas, se preferir. Vai receber em cartão ou dinheiro? Ok, faça o favor de se introduzir (enquanto falo) na máquina.

De repente, de dentro de alguém, sentir-me cuspido invisível no lancil de um passeio no bairro nenhum. Noite e tento nadar no escarro informe que estou, mas não sei nadar, merda a respiração!, e só trouxe sapatos de ir de vela. E o número grande a probabilidade respirar pesado! Huff, o foco, sufoco narrativo, foco anti-ilumina que... Tenho uma outra, melhor ideia!?  E se perante uma catadupa de casos de assédio (nem todos a sério) na academia, formasse uma linha de investigação no seu Doutoramento em relatos auto-etnográficos? Quiçá pudesse clamar o valor considerável dos relatos na primeira pessoa, conseguir financiamento de uma organização para a investigação científica definindo quem tem bolsas para desenvolver a história do “eu” dentro do mero constrangimento técnico imprescindível dos editores e avaliadores de revistas que decidem o que é trabalho (num mundo em que se paga por obedecer e não por se trabalhar) ou de coordenadores progressistas de retaguarda vanguarda que decidem o que é auto-etnográfico (difamação à nossa ca[u]sa que não deve ser prejudicada não é de certeza). Sabe, cara pessoa imatura? O bom pessoismo não tem limites. Os recursos sim, são limitados. Pelo menos depois de os acumularmos, tendem a não dar para os outros… Felizmente, em contrapartida, o conhecimento é um recurso ilimitado que eu acumulo em oferenda sacrificial para encontrar uma cura para a escassez de recursos limitados.

Escarrado no lancil e uma sensação de arrasto de um lado para o outro para o outro. Como que o peso de uma pedra em cima do meu baile de baixa sociedade. O cúmulo de sentir falta de memórias perdidas por tactear no bairro nenhum. Por favor! Chega! (logo vi que era desses!) Pronto, chega, então, que seja. Huff, o alívio do peso em cima o foco, o sufoco, o foco. Sem perceber volume no corpo, rastejando para o meio da estrada, aquilo que percebi é que em todos os exercícios de domínio, obcecado que esteja em encontrar uma justificação mais específica ou generalizada para o seu exercício, não irei encontrar nada por trás de uma ornamentação de bem-comum. Nada salvo a própria brutalidade prepotente e circular em que o acto de dominar se define a priori. Se abandonássemos a treta esotérica da experiência quantitativa enquanto argumento de privilégio laboral, talvez computássemos ao mesmo tempo um outro papel da experiência quantitativa nisto tudo. Tão só ver a mesma cena acontecer vezes sem conta. Os mesmos cargos-actores (roda bota entra... shiu!), os mesmos truques (quem te desdenha, pode-te comprar se te calares e aprov... FOCO!), a mesma missa eleitoral (vivemos tempos de grande incerteza!, peço desculpa a incerteza tirou-me o foco... Ok, retomemos), a mesma chantagem se pretenderes falar abertamente do que fazem no teu trabalho, o mesmo absurdo de uma instituição se desculpabilizar de injustiça y com a criação de um observatório que cria uma provedoria que cria uma comissão para “lutar” contra a dita injustiça. A repetição do ancestralismo. E, tendo noção disso, ou se tem nojo, um asco profundo da reprodução repetitiva da dominação e de quem a repete; ou se é precisamente quem, sabendo a arte bem-adaptada de ficar calado, absorve daí toda a vantagem, navegando e moldando percepções públicas para vestir o seu domínio de acordo com as modas hoje.

É na subsequência dessa cobardia parasítica – do que vi e vivi através dela – que eu deixei de acreditar em “comunicação”. Demasiado conspurcada pelas “maneiras de dizer que não sou eu”. Porque é isso que, paradoxo, define a estrela toponomizada. Lucrar ao serviço da humanidade roubada a um alguém explorado, controlado. E esse o maior dos valores. Tornas-te “eu” pela via pública de “todas as maneiras de dizer que não sou eu…”. Pelo que já não acredito em comunicação e, todavia, resta-me – horror à solta, tudo a falir, catastrófico, misantrópico – recorrer-lhe em desespero. Tentá-la. Ali entre finais de 2018 e de 2020, muito devido a recorrentes episódios universitários não a sério, tive até um bloqueio com a escrita. Não poder nem contar comigo! Não foi, não é nem vai ser fácil - perspectivas zero - aceitar que orientei toda a minha vida para a junção “escrita” e “artes”; que passei toda a porra do meu percurso escolar e universitário com notas excelentes só para me cagarem na cabeça. Tão-só suspirar ser o meu canto no mundo, ter condições para me exprimir livremente, dedicar-me em exclusivo à única prática em que tenho jeito precisamente por, por ter jeito, me ter dedicado a ela enquanto única prática. Melhorar, melhorar, partir sempre do pressuposto que se não tivesse espaço a culpa? Minha! E depois começar a captar tudo absorvido pelo networking, as trocas de favores, os convites ou a submissão a eminentes senhores doutores e mecanismos de censura institucionais sob o pretexto de “rigor”.

As dores, o desgaste físico, a idade a acoplarem-se ao escarro informe que alguém me cuspiu e, sei lá, lá me volta uma tridimensionalidade estragada. Levanto-me sozinho à noite no bairro nenhum. Sem reminiscências por tactear, com mais tecnicidades, adequações temáticas, fórmulas como limites de palavras, seguir um modelo que tem uma secção intitulada “Introdução”, “estudar autores relevantes” ou uma tal “linguagem académica/científica clara, formal, impessoal, objectiva, com frases curtas, sem marcas de coloquialidade, não exibicionista (exceptuando o Derrida ou um primo génio, esta normas de submissão antipensamento quadrado e pró-inovação são iguais para todos segundo os decisores que são todos primos génios FOOOCO!). É só escolher o método “não discriminatório” para a exclusão entre os vários à disposição. Garantido é mesmo que primeiro me dedico a fundo a qualquer trabalho que completo com autonomia, mas na surrealidade primeiro está a sacrossanta figura do seleccionador imparcial à porta fechada para te escrever cinco linhas de bingo de banalidade formulaica. De modo a que que se chame “científico” e lá fora se possa justificar superior, porque científico. Podes escolher entre a decisão de intermediários que não servem para avaliar mas para excluir o que não pode sequer existir antes. Nisso tudo um processo sinedóquico do que significa deter poder sobre alguém naquele meio, num qualquer aqui e agora – preservar, instituir uma elite, um clube de amigos refastelado nos seus jogos de gabinete tomado como nobre nata da sociedade. E eu apercebendo-me que as próprias classificações excelentes são quase motivo de piada e nada representam para as mesmas pessoas que salientam a importância da formação e se sustentam num pedestal pelo “mérito”. Posto que, acima de tudo, a sua superioridade incontestável e “experiente” se afigura incomparável à tua inferioridade “júnior” inexperiente. Por seu turno, os critérios movimentados de maneira a manterem-se sempre a precisa e conveniente noção de mérito no dicionário dos já superiores. Aliás, uma das razões para a mobilidade social mediante alfabetização se configurar um perverso embuste: tão cedo quanto um grau de estudos se generalize, as elites manobram, sobem, apertam os requisitos de entrada eternizando a desigualdade em estratos. E, clímax, esses que corporizam a superioridade incontestável aprumados para moralizar; ganharem uma competição para a qual te estás a cagar e terem a lata de te pregarem “mais cooperação, menos competição” ou “menos inveja e sede de protagonismo”.

Com copiosos contratempos pelo meio e obrigado a vários recuos de denúncias, sinto que acabei por ganhar nos últimos três anos uma capacidade expressiva via escrita que nunca tive antes. Sinto que distanciar-me do meu contexto universitário específico me limpou a cabeça de muita porcaria pré-definida, convenções, formatos, ideias feitas. E talvez a maior, pior das ideias feitas seja mesmo partir do princípio que o que uma figura de poder escreve ou diz está certo, deve ser seguido. Sendo claro que só o pôde/pode sugerir alcançar (e assim to construiu mentalmente) pela acumulação anterior dos recursos materiais que te roubou, e essa é a parte difícil: saber que a minha sensação de liberdade mental que me obrigou a vomitar, escrever um monstro do que me fizeram enquanto tese não poderá existir no mundo. E aqui estou eu, a escrita desde a adolescência uma compensação ao embotamento da minha fala e do corpo hiperdisciplinado pela escola. Música, pintura, outro acto que conseguisse parir sozinho… Um zero desde cedo. Infelizmente, fiquei reduzido a um meio expressivo. Agora, em adição, a escrita na qual me afunilei, a única actividade que me resta, completamente assoberbada por uma dupla impossibilidade comunicativa. Apesar da melhoria de capacidade, maleabilidade expressiva – como se tivesse desbloqueado uma pedra do cérebro –, não só parece que me tornei incognoscível para outros seres humanos (e vice-versa) como não tenho condições materiais nem vislumbre delas para expor o que o meu corpo desespera por expor.

E no fim de tudo, de facto, já não me interessa se ninguém quer saber do que se me urge dizer; se estaria apenas a denunciar carrascos a outros carrascos exteriores; que no meu tempo e espaço de vida não haja perspectivas de as circunstâncias mudarem num sentido de “desopressão”. Estou demasiado doente disto para continuar a aprender a abafar, qual desfibrilhador invertido. Cansado de ver noticiários em que entro na narrativa para me sentir um freak parabólico do outro lado da Terra. Ver, ver, ver as coisas desaparecerem… um simulacro de morte. Se a vida é sobre prepararmo-nos para morrer, aceitá-lo, sem dúvida que fiz os meus progressos. A necessidade da tese que estou a escrever vai-me consumindo e julgo que entre ela e mais uns textos, que por motivo de foco tenho de deixar de lado agora, reside o pouco. O pouco que me resta no bairro nocturno. A seguir, acho que só me falta caminhar à espera... Por ora, a melhor parte de ter feito 30 anos é que não os volto a fazer, ou, não sei, talvez dizer isso seja apenas triste, deprimente.

Vou persistindo sozinho à noite no meio da estrada de bairro nenhum. Um único foco em nada, nuvens e estrelas a flutuarem acima da Terra, o impreciso habitat do meu antigo potencial. Desligo-me e essa moldura ficcional do bairro nenhum acaba mais ou menos assim, suponho. Um pouco conforme após algumas oscilações, em 2018, ainda antes do âmago universitário “não a sério”, tinha atingido um estado de autocansaço em que basicamente decidi cortar-me de redes sociais estruturadas a partir de perfis pessoais, círculos de contactos - o que seria impensável para o meu eu adolescente e o seu modo de se dar a ver ao mundo. Disse adeus aos movimentos de avanços e recuos que, entre mágoas e restabelecimentos, foram pautando a minha abertura a seres humanos, entrando numa persistente retracção absoluta. Está sempre uma nova forma de procrastinação à espreita quando se elimina a principal, mas não só perdia demasiado tempo a pensar em algo para postar como me julgava particularmente ridículo por desejar tanto feedback de meros conhecidos. Uma espécie de ressaca duradoura, uma sensação de maior aperto existencial e comunicativo decorrente desse corte, mas se for sincero comigo mesmo não estava ou estou a perder nada senão ilusão de conexão… Envelhecendo, foi-se acentuando semelhante vontade de reduzir a minha vida ao essencial. As listas de filmes, videojogos, livros por experienciar cada vez mais curtas… A minha prioridade em fazê-lo também sem cativar consoante cativava, e, todavia, sempre tudo demasiado grande de qualquer maneira.

Tento escrever, pôr tudo o que fui colocando de lado durante uma década neste texto. Aqui dentro, numa caixa, arrumado. Intimidade supersónica capturada. Escrever para me lembrar que isto aconteceu e, ok, seguir em frente, mas nada feito. Poder escrever sem ser o joguete de uma eminência qualquer uma miragem; poder escrever tornando-me eminência com joguetes uma hipótese só que ainda mais repugnante; um percurso inteiro burlado e respectivo afunilamento prático atirado para o lixo; a ideia de meritocracia uma farsa não porque não há uma tal igualdade de partida, mas porque em vez de ganhares condições técnicas para praticar x, importa tornares-te nos direitos humanitários de um heróico gatekeeper. Um daqueles sábios pronto a vestir cisões fantásticas, lembrar e emendar que uma tal igualdade de resultados seria ditatorial - até enxegares que a dita cuja de partida lhe serve/serviria tão perfeito o branqueado paradoxo de branquear todo o processo (re)produtivo em legitimação da desigualdade resultante. Adiante... Planos meus? Simples planos meus? Ter um espaço fixo, um gato, um cão. Talvez… irrealístico até o mais simples... e, em todo o caso, estar vivo só para isso? Aos 30, um balanço negativo de estar vivo: dói mais do que não dói, dura mais se for dor. Bolas, e ainda a decadência física a lembrar-te dela pela boca de um joelho. Contigo para sempre, cada vez mais próximos <3.

Eu tento escrever e as palavras nunca chegam, nem aliviam como quando tinha 16 anos. Estes posts íntimos enchiam autênticos balões de oxigénio para me aguentar mais uns meses e necessitar de voltar a escrever. 2019, 2020, ∞. A ansiedade de e-mails ao pequeno-almoço, tentar adormecer e acordar nervoso em sobressalto, mil mentiras nobres na puta da cara. Agora só queria terminar o texto sem voltar aqui, à noite no bairro nenhum, não consigo. Afinal não. O meu humor iôiô de adulto – uma norma de exasperação com rarefeitos instantes de radiância. Sozinho à noite no meio da estrada de bairro nenhum. Assente na Terra, baixo a visão das estrelas e nuvens para o que vem à minha frente na aporia tacteável. Vêm-me reminiscências de típicos adultos a fazerem alguém sentir-se especial em criança, ugh. Apagarem-te a revolta, domesticarem-te, amedrontarem-te com esperança. Em vez de resgatar os muitos fogachos pueris iridescentes, avassala-me de repente a memória sombria de momentos de tédio infantil durante demasiado longas férias de Verão. As portadas fechadas dentro de casa por causa do calor, o cheiro a velhos móveis de madeira, uma cor parda de enclausuramento no ar; ser um mero sidekick de adultos; algum adulto já foi criança nesta casa de avós! Tudo repetido, gasto, inútil, a minha cabeça estragada logo aos 5 anos de idade. Abano a cabeça e consigo - do mal, o menos - sair desse mau ambiente da minha pré-histórica vida de dinossauro. Sem sequer ver tal holograma na estrada, vem-me a conjectura monstruosa de velho apodrecido num lar se tornar tudo um hoje. Reviver mortes, humilhações, uma rejeição amorosa, bullying na escola com a intensidade da primeira vez. Tudo o que sempre quis de volta a casa! Vou saltando de horror em horror mentais e a certa altura desisto, caio de joelhos inconsoláveis no bairro nenhum. Fecho os olhos por uns segundos, a coisa pára. Reabro-os a flertar com ideias anti-natalistas: apareceres aqui sem escolha e nem sequer poderes escolher o fim enquanto antecipação...  

Mas ainda mais um outro, um pensamento de corrida. Este voltado para o passado, para o presente, para o futuro. Sinto os lábios, as maçãs, os maxilares trémulos de raiva enojada por todas as vezes na história em que a boa educação de não chamar nomes aos outros serve para etiquetar o estilo bom e belo de um “educador” por isso soberano e possuidor. Pois apontar um “cabrão explorador” constitui um gravíssimo atentado à honra digno de gente rude e taberneira; ser um manipulador sádico e asséptico que fode insidiosamente alguém com o seu poder (um cabrão explorador!) ainda é naquela…

E depois olho para o lado à noite no bairro nenhum, para o passeio donde eu escapara escarro informe, e vejo a invisibilidade de um Senhor Professor Doutor em loop. Come-te, cospe-te beata no chão e arrasta. Esfrega a sola com a boca dos outros e continua em frente como se nada fosse. Até que passa a estafeta a um homólogo que. Come-te, cospe e… E é assim que as instituições mudam o mundo. Do lado oposto da estrada onde está o Senhor Professor Doutor, lá está bem invisível uma diversa equipa de servos da gleba que acreditam em deus no intermédio a que beijam os pés. Só apupam um porque aplaudem outro... homólogo com a estafeta. De maneira que todos aplaudem o lancil do passeio e querem, querem, querem! Ser incluídos!

O invisível e a dúvida, em detrimento de um querer ir além, transformados no produto acabado de manuais de instruções, verdades feitas contrárias ao brotar imanente e individual de uma crença. Capitalizar para obedecer, esperança se se obedecer, de escarro se vai ao longe. Se deus quiser, volta-se da terra para a Terra para o flutuar acima da Terra pela juventude sugada de alguém ninguém. Amadurecer. E porque o bairro nocturno nenhum se situa numa democracia madura, a equipa, essa diversa identidade colectiva não atomizável, a saber dizer muito bem por vozes representativas que, conquanto não seja a sua escolha, sabe respeitar o deus do outro, porque o que importa mesmo é que seja um deus. #Igualdade. E porquanto numa sociedade do conhecimento, a ciência a simular que especula com toda a sua predeterminação estrutural de uma elite, uma hierarquia, um corpo iluminado de decisores como sempiterna resposta antecipada.

Ainda de joelhos inconsoláveis, olho para um outro lado da estrada - nem esquerda nem direita (É PORQUE É DE DIREITA!) - depois de viver milénios da mesma merda a ver o mesmo loop do Senhor Professor Doutor a ser visto pela equipa de servos da gleba; estou bem decrépito, idoso, até a dentadura já tem danos. A terra. Olha! Olha, ali não vai deus morto! Deus morto enquanto qualquer tipo hipotético de “eu” único e irrepetível viveu feliz para sempre enquanto cargo, código, lei, instituição, estátua, sob a forma de desigualdade e exploração justificadas entre seres humanos. Olho de volta, e em relação, para o loop do Senhor Professor Doutor. Pois. Por isto. Ali! Na via pública! Ali vão “todas as maneiras de dizer que não sou eu…”, essa fábrica anticapitalista de distribuir um kit gourmet de seres humanos enquanto único deus realmente existente. A criação do/a/e super-homem/mulher/enebê.