"Pensas
que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no
mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas
começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente." - Paul Auster
Já vi vi os
dois lados agora: a expectativa e a retrospectiva. Se tiveres sorte, chega a
existir alguma coisa pelo meio. Uma por uma - com uma excepção - toda a gente
te vai desiludir e vai haver menos gente para te desiludir porque não vai haver
gente. Quando conseguires e eu consegui o feito de desiludir primeiro quem
nunca me desiludiu. Arruína o cérebro mais bonito da história da humanidade com
a ruína do teu.
Saca-lhe a
beleza da visão, saca-lhe o fácil sorriso automático pelo qual te encantaste.
Espalha o cancro que és. Lentamente aceitas que tens de te afastar de quem se
afastou porque te afastaste primeiro e que a ordem dos turnos importa zero.
Deixá-la reexistir sem o cancro. Até que... portanto, uma por uma, não vai
haver gente. Contigo incluído. Ninguém te vai desiludir mais do que tu a ti
mesmo. A tua própria vida. Sem mãos, agência, desagente. Excepto o teu estúpido
cérebro. Porque de volta ao básico, à solidão da tua configuração padrão, aí
vem mais uma golfada de incomunicabilidade. E estes, demasiados acontecimentos
na pele, já não são os teus tempos. Fardo, gasto, resignas-te a ver tudo
acontecer por um televisor.
Tentas pôr uma
cara de apatia por cima da cara de horror. Sempre foste um pro nisso. Antítese
da asquerosa invencibilidade de rei do recreio, tornas-te tão pequeno dentro de
ti com um mundo tão grande engolido durante anos. Decrescer por crescer.
Minguar até seres um verme. Um por um, os momentos, o mundo, chau. Aqui vamos
nós outra vez, a tentar fingir que uma pessoa importante nunca existiu… ou pelo
menos a sua importância. E aí encontro o meu slogan existencial: seda & sedado,
a maneira que quero estar. Como uma almofada, à deriva, suavemente a
sonhar. Aquele relance antes e depois do sono, a melhor parte do dia-a-dia. Eis
o princípio a seguir: minimizar o sofrimento, o hedonismo possível.
Atarefares-te tanto de trabalho e hobbies que passas o dia sem pensar, aterras
no sono sem pesar. É esse o sonho. Agora. Fazer montes de coisas para não
enlouquecer. O sonho dos tristes e quebrados. O meu. Sonho tanto com ele, a
forma sem conteúdo! Estado de fluxo versão drone humano. Passar pelos
movimentos, autómato sem dor ou sofrimento, o que (já não) tens agora nem
interessa.
Ou talvez,
pelo contrário, só importando isso. Quando tão sovado por tudo começas a olhar
para qualquer ser humano, para o espelho e já não consegues ver mais que a
intermitência de reptilianos a comerem-se e destruírem-se uns aos outros
enquanto fingem que não… seda &
sedado, a maneira que quero estar. Estar tão morto e indiferente que recrio
a ficção de esperança por não pensar nela, na sua perda. Afinal de contas, não
foi por isso que ela pôde existir em miúdo? Por doce ignorância?
O problema é…
aquele relance depois do sono, antes da realidade se instalar… passar. A mente
a refocar-se nos inputs sensórios à volta dela. Angústia e às cabazadas,
demasiada bagagem, uma derrocada e comer pedras. Puxar a cara da almofada para
a memória de ti na cama onde devias estar. O início repentino e um fim como se
nunca tivesse havido nada. Como a vida. Começar a desmanchar-me todo por
dentro, dissoluto, ansioso, deprimido. A perda. As nossas fotos, os nossos vídeos,
a nossa rotina. Pensamentos flashes de demasiado. À minha volta sob a forma da
sua falta. Luto. Sentir isto a morrer e a morrer e a morrer sem fim. Sem uma
mensagem mágica, uma voz surreal que de facto voltasse tudo ao que era. Mas não
conseguir esconder os meus pensamentos de mim, odiar-me no revisionismo, à
procura de sinais de quando e onde começou a falhar, se calhar desde o início e
nunca tudo foi assim tão especial. Odiar-me a mim mesmo a conspurcar essa
memória do mais bonito que me aconteceu, um sentir seda sem estar sedado, a
coisa mais próxima do paraíso, as expectativas que sempre sonhei. Ao mesmo tempo,
nada me dar mais náuseas que aquela ideia feita tão terapeuticamente certa de esquecer ao aprender
a ver o que de bom aconteceu. Ainda assim, ainda que nem sempre, tiveste o
melhor de mim, e o melhor que eu dei a alguém. Além de que eu juro, egoísmos
mesquinhos de reptiliano à parte, só queria que agora voltasses a ficar bem, mesmo que longe.
Mas últimos
meses com vários dias a bater no fundo, sei agora pela última e derradeira vez
que não existe para sempre nem mortes fora. Não pode existir o que eu acreditava existir-me aqui e agora… E depois tento fechar este texto, mas
lembro-me que este ano vou comer nêsperas sem ti. As merdas mais simples, mais
mundanas, mais belas, mais cruas a atravessarem-me a dor de consciência. Dói-me
onde não existo, preso na sala de espera da vida. Uma maldição à espera de
acabar. A envelhecer. Velho e decrépito como um regresso antecipado à terra
natal.
Tem sido isto: dias multiplicados em faz 5 anos daquilo e disto. Mas já nunca é 6, vai tudo a oito e quando reviro a cara (para me refocar no pensamento) contar dois dígitos desde tudo o que importou às vezes 25, um quarteirão. Estou tão perdido aí, à frente do fantasma de bairro nenhum: o que resta do meu tudo. Nada.
Se eu tentar fugir, se eu correr - e já não corro como dantes - só fica mais rápido e mais alto, o volume do desaparecimento. O grito do horror disso. "Em que ano estamos?"... a sucumbir em que dano estamos. Em joelhos de quase trinta. Então as minhas memórias tão tão maiores de idade que a vitimarem-me em atropelamento e fuga, a viver as suas próprias vidas longe do carrasco do meu corpo. Tornámo-nos dois: o infantil, o juvenil, tudo o que definiu de um lado, e do outro isto. O horror na pele, o eu que não consegue reconhecer o que raio aconteceu (ao tempo, ao espaço, às pessoas, ao corpo...) senão enquanto outro. Um maldito monstro desficcional, carne e cru.
Talvez uma
maneira estranha de o dizer seja que, enquanto criança, enquanto adolescente
não imaginava, figurava, nem sequer conceptualizava que ser velho não acabava.
Os teus avós... enquanto sobrevivem... os velhos ficam mais velhos. Mais e mais
dentro deles mesmos, próteses, muletas, solidão, cadeiras de rodas, camas,
dores, cérebros fodidos, sem memórias. De volta à terra. Não morres
simplesmente. Vais morrendo... mais velho. Os teus pais tornam-se os novos
velhos, tu tornas-te (quase) as primeiras memórias que tiveste dos teus pais.
Trintas. Por tão simples e óbvio que seja, acho que só computei, senti isto
pela primeira vez em 2015, aos 21. E acho que só porque pela primeira vez
entrava na parte do filme da minha própria decadência física. Olhos piscados
para 2023, a cena decadente continua a adensar-se e aterroriza porque, anos de
chocolate e anos de aventura gorados, eu ainda só estou de volta à Terra... com
T grande. De volta do espaço, do cósmico, de viagens sensoriais interestelares.
De volta ao planeta.
E é de noite.
É de noite no bairro nenhum deste texto. E custa-me explicar. Já nem tenho a
certeza que me importe explicar. O bairro, a noite, o nenhum. São graus de
incomunicabilidade comigo lentamente, progressivamente a aceitá-los. O horror
corre foge. Porque tentar comunicar-me a alguém tornou-se outra palavra para
impossível. E como comunicar o incomunicável sem me afundar no regresso? Sem
precisar sempre sempre sempre de uma nova palavra para explicar uma palavra
anterior? Metros, metros e mais metros a caminhar no bairro nocturno nenhum. Chegado
aqui na vida, estou cansado, soporífero demais para empilhar metros. De água ou
subterrâneo, tão surreal aqui em baixo, aqui dentro; cada vez mais eu menos tu.
Mas também um eu feito de falta de eu. Como acordar durante a noite confuso com
a orientação do corpo no espaço. Confundir a cama, a casa, o rectângulo de
escuridão menos escuro que vem do corredor. Confundir tudo com o que o hábito
ainda sabe de cor do eu original. Porque eu sou só a sua variação.
E é então que
saio pela porta de entrada e… E é de noite no bairro nenhum deste texto. Onde
tão distante só já parece possível comunicar comigo, para a minha infância e a
minha juventude me lerem. Um esoterismo tão peripatético quanto patético. Talvez
porque em 5 dias vou fazer 30 anos e dizer para dentro que a minha juventude
oficialmente acabou, precisava de lhe escrever isto. Um balanço, ainda não sei
bem. Um casting do paradoxo; às apalpadelas no escuro até que,
formigueiro farol de habituação nos olhos, as coisas ganhem a sua forma de
mito… pela via de palavras incertas.
A verdade é
que nunca projectei a sério ter mais que 20 anos. 20s que fossem, os 29 eram o
limite do concebível e tudo o que viesse a seguir um longo, lento e longínquo
declínio. Tudo o que fosse melhor de acontecer, tudo o que fosse de novo e,
acima de tudo, tudo o que fosse marcante aconteceria até aos 30. Os 30 esse
grande divisor, por mais que ciente que por muita endoutrinação cultural e dos
média; que não acordas um dia magicamente diferente, velho e acabado por causa
de um artifício mental, uma data num calendário. Na realidade, as coisas
aconteceram-me mais cedo, cedo demais. Primeiro, um trauma fílmico a despoletar
um surto de hipocondria e medo da morte aos 9. Depois acessos de nostalgia
infantil e medo do envelhecimento aos 14. Desde aí: frequentemente imerso em
cálculos mentais diários e ridículos sobre há quantos anos foi x; em que
ano terei metade da idade de y; decorar anos de nascimento de inúmeras
pessoas; notar em que lugar alguém estava ou o que tinha feito com determinada idade;
recordar aniversários de sentimentos ou até acontecimentos banais; ruminar na diferença
perceptiva entre dois quaisquer intervalos temporais iguais (e.g., 2003-2009 e
2012-2018).
Mas mais do
que as neuroses dos 9 ou dos 14, os meus 20s foram os meus 30s. E se bem que
mentalmente me sinta mais conformado (o que é, talvez, mais triste do que bom),
por outro lado assusta o que está por vir. O adensamento, porquanto começo a
ter, de facto, idade disso, de cair. Os danos físicos, a desagência de um carro
biológico a pisar-me e repisar-me até aos ossos perguntando-me sádico se “está
pior assim?”. Chegou a um ponto em que aprecio doenças agudas como gripes (se
e) para gozar o seu período de convalescença, a hoje rara sensação de sentir o
corpo melhorar. Masoquismo. Porque desde 2015 a uma média de cada par de anos
vem mais um esguicho de dor ou limitação crónica. Olhos, costas, maxilar,
estômago, joelho, enfim… Sobretudo estes ossos e articulações de um corpo dos
trezentos! Que perante isto não tenha nada activamente a matar-me só é
contentamento e não irrelevante para os grandes altruístas desta vida (o
espécime mais perfeito tende a possuir liderar outros corpos no seu
local de trabalho em nome do bem-comum) com os seus humildes Jogos Olímpicos do
sofrimento. Pois dentro da minha pequena, única e irrepetível vida, era uma vez um
miúdo plasticina, agilidade, velocidade, facilidade motora que adorava
desporto, correr, jogar futebol. Alguma avaria sucedia e em pouco tempo estava
como novo. E de repente isto: 20 e poucos com ardores aqui, fraquezas ali,
rigidez articular acolá. Membros exaustos com sensação de atropelamento ao fim
de um normal dia de rotina fora de casa. Ultrapassar crises, encontrar novos
equilíbrios só para surgir outro problema, ponto fraco, desequilíbrio.
Do miúdo total
que não tinha nada para esta merda, este caco. Tão rápido, cedo e eu não lidei
nada nada nada bem com isso. Em qualquer balanço que faça da minha vida eu vou
sempre lamentar e incompreender os meus vintes num corpo de velho antecipado.
Por esta altura já estou cansado do cansaço que me causa o quão expectável é
mais uma degradação para a lista. É já amanhã? Bolas, como tudo perde
progressivamente valor, potencial e expressão por causa da mesma cápsula mortal
que as criou primeiro… É essa a radiância invencível que, somente agora à
distância, vejo de perto numa criança saudável. Torcer, pino, cambalhotas,
saltar, girar, correr, gatinhar, cair. Plasticina. O momento antes da perda. O
corpo progressivamente a melhorar antes da irrecuperável perda do miúdo total.
A chorar para, espontaneidade, sorrir no minuto a seguir. Seres de dentes de leite com anos de chocolate. Mas
adiante, a saúde física é só a maneira mais aceitável porque incontrolável –
não escolha individual/social de exploradores – em que vi vivi a minha
juventude sugada antes do tempo.
À frente do
fantasma de bairro nenhum e não sei onde vou. Caminho para onde cheira a quando
me apeava do autocarro. Voltar da escola. Andar entre o fumo e as luzes da
noite no Outono. Às vezes os fones. Bandas e canções preferidas. São e salvo,
em paz com uma angústia adolescente infinita. A snifar anjos da pulsação do ar.
Algo eterno e mitológico nessa imagem a repetir-se-me em perda e acho que
talvez por isto: a sensação que mesmo quando o dia acabava, o mês de Setembro –
com todo o seu renovado potencial de aventura, romance, diversão e epicidade
banal – nunca iria não voltar. Era eu em versão personagem televisiva, a
novidade na terceira pessoa do impossível que um dia poderia ser. Ser eu sem
agora precisar de escrever este texto, ser eu sem estar à frente do fantasma de
bairro nenhum. A não saber onde vou mas a saber que preciso de sair; que onde
estou não estou e tenho de me ir resgatar. Um louco dissociativo em versão
acabada.
Aporia pelo
nocturno fora e os meus dias de há uns (d)anos para cá têm sabor de epílogo. Desistência,
desexistência. Desisti de tudo (ou estou a desistir do que falta desistir) e
amanhã aí vem a maior golfada de nada. 30! É como se alguém me chamasse do andar de
baixo para ir comer e eu dissesse que “Vou já. Só estou a aprender a morrer”. a
terra. As linhas na testa das paredes, a maçaneta da porta a chiar, os
brinquedos quebrados, empoeirados e encaixotados, a loiça gasta. O palhaço
desvanecido da minha caneca de infância. Os simulacros da ruína que a casa onde
cresci vai ser. Ou já é, de certo modo. O horror na pele de quem habita estes
espaços e objectos. Comigo a vê-lo ao espelho. Trintas. Pai e mãe. A minha
primeira visão deles. Pai e mãe a tornarem-se fantasmas do que agora vejo em
mim.E fico a perguntar-me se a coisa flui assim: as
pessoas tornam-se pais para se verem crianças outra vez; e se os seus filhos se
tornam pais, tornam-se avós para verem outra vez o filho que não viram da
primeira vez. Sempre este lapso, atraso temporal. Dói onde? Dói no quando da
projecção e da comparação de uma doença chamada empatia.
Mas não há
paredes, fronteiras que cheguem para nada disto. Quem está no polidesportivo,
quem está na paragem de autocarro, quem passa pelas ruas por onde voltava da
escola, eu já nunca sei. Não conhecer ninguém. A minha idade foi-se embora com
todas as pessoas que também já não estão aqui. Ali. Na tTerra onde
cresci até lhe flutuar antigravítico. Então, começo a lembrar-me também do que sempre fiz. A viver vicário em
séries, filmes, música, videojogos, livros, desporto. A experiência desses
interesses a entrarem em mim na mesma medida em que eu precisava de sair. Donde
quer que estivesse. Seco, vazio, entorpecido, alienado, humilhado, esmagado.
Sem amigos e com todo o funcionalismo hierárquico diário normalizado à minha
disposição. Inquestionável, desimaginado por omissão opressiva de alternativas;
a construir uma jaula invisível delimitada na silhueta do meu próprio corpo. De
qualquer maneira, esse viver vicário nunca me foi sobre a sua versão celebrar
acelebridade (que começa no simples salivar o autógrafo do deus
cujo hipotético conhecer faz derreter); sempre sobre injectar-me com outros
universos estéticos/passionais. Veias vias vidas possíveis, milhentos
quarteirões delas a dinamitarem becos existenciais. No entanto, ao longo da
última década deram-se dois fenómenos:
a)a incapacidade destes choques de adrenalina
fazerem frente ou sequer atenuarem significativamente as crises de dores,
limitações e o meu consequente abatimento psicológico. Idem quando a tal se
aliou perceber e viver um status quo de assédio pessoal-institucional,
os períodos mais depressivos disso em que não conseguia fazer nada senão sentir
raiva misturada com angústia. Tudo ao ponto de quase ignorar álbuns recentes de
eternas bandas preferidas ou de nem me aproximar de objectos estéticos no
geral;
b)o meu próprio entorpecimento, falta de
disponibilidade emocional perante obras ou experiências novas. Como se
comparado com o peso formativo, definitório e definitivo do passado – a conexão
artística com anos e anos de algumas das minhas memórias mais queridas – a
novidade se afigurasse quase sempre e cada vez mais menor, réplica, repetição…
Saudades… Daquela
sensação de descoberta à medida que me embrenhava numa prática artística, num
género, num hobby. A música, o pop-punk, os blink-182 e os Foo Fighters aos 13;
as séries televisivas e o cinema, os thrillers psicológicos no Verão de
2009 aos 15. Com Lost e o Fight Club à cabeça. E antes que desse
por isso quais patas de aranha internéticas a levarem-me a tantas obras,
humores, narrativas, ambiências, psicosferas. O relatável que não encontrava no
cru e gélido mundano na idade em que ganhava mundo interior e me começava a
sentir pessoa. Única, irrepetível, sozinha. Sidekick de ninguém,
protagonista do meu quarto habitado noites adentro. As janelas semi-abertas
entre frechas de persianas. Silêncio ou grilos, soavam símiles. O cheiro da
relva molhada. Cada ser humano na sua cápsula inconsciente, o mundo
funcionalista em pausa e eu a preencher o vazio. Aprender a viver noctívago em
ecrãs porque sentia a minha angústia adolescente minimizada durante a noite
camaleão como os meus sentidos indefinidos. Mais que tudo, o bairro nenhum
deste texto ainda ficava mais no futuro. E em retrospectiva isto é tão
inefavelmente tudo. Estas recordações, dane-se! Pelo que em retrospectiva, eu
posso mesmo dizer: eu tive uma angústia feliz. Por mais que esfoladas, eu tive
uma infância e uma adolescência felizes. Sempre este lapso, atraso temporal.
Só que não
sempre. Os últimos anos também trouxeram em boa dose períodos, momentos
que sou incapaz de romantizar. A raiva, a angústia, a revolta, a perplexidade;
todos os sinónimos insuficientes do mundo a engolirem-me. E eis que a própria
memória se desliga; sentir inteiros blocos de tempo fora do espaço, fora do
tempo, fora de mim. Bloqueados como se não fizessem ou não devessem ter feito
parte da minha existência (outros momentos… e pessoas… demasiado dentro, que recordo
demasiado bem). A saúde, sim, claro. Mas sobretudo a universidade. Até os mais
calmos, distantes (e a certa altura já nostálgicos) tempos de licenciatura
retroactivamente contaminados por este cancro. Que apaga sem apagar. Se o que
vivi fosse a sério mas não foi logo não foi assédio, é a isto que chamam
trauma?
Enfim, falava
eu de interesses e, então, o que mais? Ora, apesar de cada vez menos, houve o
que se afirmasse enquanto favorito sob o peso de outras obras com uma nostalgia
avassaladora. Na música, a Phoebe Bridgers e o seu álbum Punisher
(2020): o som quieto e ecoante para a letra tão vulnerável, às vezes surreal
com um poder imagético brutal. Mais um autocatastrofismo tingido de sarcasmo. Também
adorei um par de novos álbuns de favoritos de longa data como blink-182 (Nine)
e The National (I Am Easy To Find). No caso de blink-182, aliás, o
empolgamento para um álbum com a formação clássica da banda já em Outubro tem me
devolvido um pouco os 18 anos e o início do meu 12.º ano. Noutro campo, tão bom
o ataque modo pastilha-elástica (na forma e no tema) a uma lógica de
boas-maneiras e violência asseadinha no filme Daisies (1966). Em termos
de séries, a maneira como Mr. Robot foi tão frenética e melancólica em
concomitância. Os enquadramentos, os ângulos de câmara inortodoxos, oblíquos ou
nas margens perfeitos para o isolamento urbano e tecnológico das personagens.
Neon Genesis Evangelion e a análise egóica de um adolescente disfarçada
apocalipticamente de combates entre robôs gigantes. No geral, há ainda fases em
que consigo reavivar fases! Fogachos de motivação interna por um género e
período, por exemplo. Nos últimos dois anos, e.g., aconteceu com filmes de gangsters.
Aconteceu voltar ao meu ponto de partida cinematográficos dos thrillers
psicológicos e de mindfucks.
E bem, a década dos 20 aos 30 foi pelo menos a década em que
me dediquei mais a sério a ler. Aquela em que descobri o meu escritor e livro
preferido: Bruno Schulz; o conjunto de contos As Lojas de Canela, de
1934 (Sanatório Sob o Signo da Clepsidra, 1937, não fica muito atrás). Através de uma prosa barroca, com acessos de metáforas e metamorfoses surrealizantes, o narrador-protagonista
numa autobiografia mitologizada da sua mundanidade, de episódios cristalizados
da infância e adolescência. A plasticina do miúdo total. Experienciar tamanha proximidade
que, sintomático, tematicamente, vai dar a isto, aqui e agora. À minha
necessidade de tactear à noite no bairro nenhum deste texto cujos quarteirões
passados caminho. Ali está… A essência dos jornais desportivos que ia comprar à
papelaria quando tinha 10 anos. As ilustrações cravadas na retina sei lá como
quando abro um velho livro de infância.
E já aos 26,
também uma era de renascimento dos videojogos em mim. Se após a omnipresença em criança (a começar com o Pokémon Azul no dia em que fiz 7 anos; quer a
ver jogar, quer a jogar) e muita intermitência adolescente até aos 15 estes
quase sumiram, desde 2020 boom! Algumas das piores situações tinham acabado
de ocorrer. *Inserir aqui a especificidade de situações censuradas porque
difamatórias porque lesam o bom nome da instituição e do senhor que tanto a
serve*. Sentir o cérebro sugado por sociopatas muito letrados e muito bem
formados – perceber de uma vez por todas que sucesso é isso. Legitimação para
possuir e chantagear outros sob a ficção da idoneidade e da responsabilidade.
Chamar-lhe ética do cuidado e colaboração. Chamar-lhe não ser egoísta,
chamar-lhe não ser eu. Isto. Nunca existiu, nunca houve e às vezes à noite no
bairro nenhum quero cair de joelhos até ficar sem joelhos, desaparecer da face
da terra. Que se lixe o corpo, que se lixe a memória, que se lixe eu. Nunca
existiu. Nunca escolhi. Não poder simplesmente dormir… e então congelo. À
espera de nada, nada e depois nada. (Enquanto aprendo que “houve pessoas aqui
que sofreram a sério” enquanto quem o diz estende a boca à mesma fonte de
assédio. O poder. O poder em bruto. Não a metafísica quantitativa do abuso de
poder.) Os videojogos renascidos algures aí. Única memória e agência durante
meses sem inteiros blocos de tempo na cabeça. Máquinas de pingar nostalgia, e às
vezes ajudarem-me a ficar melhor num longo e vacilante intervalo de
reconstrução, fazer sentido diferente do que me vendaram ao vender e do que me
venderam ao vendar. Ser preciso decrescer para lhes ter o nojo e ódio necessário
(ódio, sim!). Cargos, idoneidade, essa pessoa-estrutura. Porque é o inverso do que
construíram os seus mitos de grandeza: aquilo que não se faz começa por importar
muito mais do que aquilo que se faz. A indiferença contra a qual tanto se clama
– o cliché disso – está contida na atenção minuciosa de construir uma diferença
hierárquica com a justificação de que contra a indiferença.
Mas – suspiro
interpenetrado nesses “joguinhos de poder inevitáveis”, consoante os explicaria
a douta autopreservação de um essencialismo sociológico deveras consternado
com um qualquer feio, inestético, deselegante, mau, totalmente evitável essencialismo
biológico – os videojogos. A variabilidade sem costuras do Half-Life 2 e
uma aproximação a first-person shooters de modo lato; o Portal 2. Estar selado e
isolado nesses puzzles de ambiente clínico-industrial com humor negro
randómico à mistura. Consola retro, os gráficos bidimensionalizados com a cara
da minha infância; os 16 bits hipnóticos de outro mundo na banda sonora do Super
Metroid. A maneira como a jogabilidade e a estética desses meados dos anos
90 me remete para uma atmosfera de quietude, pequena-escala, intimidade, talvez
porquanto pré-internética. À semelhança do que ocorre com a literatura, ainda
sinto uma relativa maleabilidade em termos de favoritos nos videojogos por
faltar tanto que quero (ou queria) muito experimentar (porreiro ter esses dois horizontes
voltados para o futuro). Entre 2020 e 2021, houve inclusive um belo período de
descoberta análogo à minha aproximação musical aos 13, cinematográfica aos 15. Constatar
listas, géneros, recomendações, evoluções históricas, plataformas e definir “obrigatórios
de jogar” de uma maneira que criança ou adolescente nunca fiz. E esse simples
entusiasmo recuperado a cifrar-se no que de melhor me sucedeu nos últimos 10 anos.
Se eu olhar
suficientemente no fundo do bairro nenhum a rua parece um museu pueril. Ali
estou eu, sentado na sala, quase 7 da manhã à espera do início de emissão para
ver os desenhos animados preferidos. Depois a taça de cereais, chocolate ou
mel. Os meus brinquedos… isto tudo tudo tatuado tudo, a acumulação de eus
perdidos para os confins da galáxia. Ficar sinceramente a achar que o problema
não é blá blá blá o tempo voa, a vida é curta. Antes se torna longa, decrépita,
ao chegares aos 20 acumulado de eventos, coisas, bagagem, traumas, prazeres,
pessoas, nostalgia, humilhações só para ruíres a partir daí. Dentes gastos sem anos de chocolate. Mais
veres quem gostas ruir primeiro ou contigo e cada vez mais seguro de que sim. 20
ou 20 e tal anos sem curva descendente chegavam bem e melhor. Caminhar,
caminhar, tactear uma bola na aporia nocturna.
Futebol! O que
raio aconteceu? Como é que uma prática quase diária dos 7 até aos 20 anos
desapareceu tão definitiva e globalmente da minha vida? Junto com escrever,
jogar futebol foi a única actividade para que tive e (terei) algum talento na
vida. Não ressinto as oportunidades que tive de levar o futebol mais a sério conforme me
garantiram que iria ressentir mais tarde. Nem um milímetro. Abstraindo-me do
próprio elitismo e concentração obscena de recursos do costume, eu nunca senti
que tivesse qualidade para ir além da divisão nacional mais baixa (e isso no
absoluto máximo dos máximos). Tal como nunca quereria estar numa situação na
qual me percebesse inferior, incapaz, invisível (para isso sempre me tive a mim
mesmo). Aquilo que de facto ressinto consistiu e consiste na impossibilidade de continuar as
circunstâncias óptimas que me levaram a permanecer 7 anos num clube. O ambiente
familiar e divertido com as pessoas que sempre conheci a acreditarem em mim e
eu apto a ser decisivo. Isso e ressentir que com outra persistência mental,
mais algum treino poderia ter dado um pulo qualitativo no meio em que estava
inserido. Depois ir para a universidade, mudar de casa, chegar aos seniores
fosse como fosse e não sentir nem espaço, nem conforto, nem capacidade. Perder
todas as circunstâncias óptimas. Até que restou o hábito esporádico de jogar
futebol entre colegas de curso e de o reintensificar ao voltar a casa num par
de Verões. Até que 2015 um pouco e em 2017, fosse como fosse x2, com 23 anos e
uns meses já me tinha perdido para a podridão do meu impróprio corpo. Creio que,
entretanto, cheguei a estar 5 anos sem tocar numa bola de futebol. O meu eu
infantil e juvenil não acreditaria! Se tiver essa bola nos pés agora, o prazer vem
junto com o desapontamento de ter acabado embotado de uma dimensão existencial
tão estruturante para mim. Idem para correr. Se quando cheguei à universidade
isso fez a vez regular e intensificada perdida do futebol, por iguais motivos
físicos em 2015 já parara de estar confortável para correr.
Desde há
muito, fiquei, portanto, reduzido a acompanhar o Benfica, esse outro entretenimento
passional que vem da infância e tão inconsciente, inexplicável que nunca vou
saber porquê. Quer dizer, jamais conseguirei explicá-lo como justificaria
esteticamente uma canção preferida, por exemplo. Conquanto ache que esse interesse
só me foi e é possível por um semelhante elemento de jogo imersivo, quadro
ficcional para lá do repulsivo substrato institucional.Também aqui não consigo deixar de olhar e ver fantasmas: há um Benfica
original entre 2002 e 2003, um treinador, jogadores em específico do meu tempo
de o (re)conhecer primeiro, como se tudo o que o sucedesse fosse uma variação
falsificada desse original. Pouco importa que tenha sido uma fase sombria no que toca a resultados. E um pouco o mesmo em modalidades que não o futebol – mais que antes, o
interesse existe mediante seja o Benfica “em campo”. Pese embora o ciclismo e, sobremaneira, o
ténis que costumava seguir em miúdo na televisão tenham tido uma ressurgência
inesperada em mim nos últimos 5 anos.
Enfim, o
horror na pele e por esta altura já o horror neste texto nenhum, patético e
peripatético que a minha sensação de perda me obrigou a escrever. 30 e tudo.
Deambular. Constatar que, sem ser o futebol e a corrida, o meu círculo de
gostos e hábitos pouco se alterou desde meados da adolescência. Reparar que com
a carga dos últimos anos em cima tornou-se-me ainda mais fácil, espécie de
predisposição, cair num nada ataráxico. Razão pela qual, em reacção, tenho tentado
alargar o espectro de acções ou hobbies – de plantas a jogos de tabuleiro a
viagens. Os primeiros dois casos sem grande (com)sequência. Mas como um rato
doméstico sempiterno, nos últimos dois anos o vazio e o tiquetaque dos 30 lá me
levaram a alguns locais há bastante desejados. O Parque Natural do Gerês (para o
eu que adora floresta e montanha, expectava e cumpriu-se o sítio perfeito), Sintra
(algo pendente desde uma nostálgica mas insuficiente visita de estudo no secundário),
ver o Benfica no Estádio da Luz (quase bizarro que somente agora!). Sem
imprevistos, também o concerto dos blink-182 em Lisboa dentro de uns dias (a
minha banda preferida a partir dos 13 anos e apenas o meu segundo concerto em
termos absolutos).
Portanto,
viajar enquanto algo inexplorado, apontado ao futuro, para ir fazendo esporadicamente.
Acho que, no fundo, eu a tentar lentificar o tempo como mandam os manuais da
percepção: introduzindo experiências, elementos novos. Mas não consigo evitar a
sensação de que estou a forçar criar uma ficção em vez de ela existir por
natura tal e qual existia. Como se agora estivesse preso na fábrica da
realidade e não houvesse estrada à noite que não há nem bairro nenhum. Sem
precisar de querer cair de joelhos até ficar sem joelhos, porque a Terra e a
terra desapareceram da minha face. E aqui estou eu assoberbado, passado a ferro
pelo passado. Um carro ao lado a arrancar, eu congelado a ver tudo ir embora dentro
de uma loucura demasiado sana. E não há faróis vermelhos numa recta com aragem,
não há luzes melancólicas em cedência num céu a servir tangerina em bandeja,
não há um rapaz a cortar cebolas no arrebol secundário entre plátanos
suburbanos. Não há canções, não há filmes, não há sonhos. Não há ninguém para
me vir buscar porque “já passou e vai ficar tudo bem”. Precisamente porque já
passou. Repeti “vida” demasiadas vezes e entrei em saciação semântica. Depois
repeti “saciação semântica” demasiadas vezes e saí de qualquer saída.
E depois, mas
e depois, e às vezes, poucas cada vez mais poucas vezes, eu caminho. Porque caminho
literalmente cada vez mais e longo. Esse sim, hábito novo. Muito menos
acontecia antes… Uma hiperatenção aos espaços, ao horizonte, aos ambientes
mentais, aos prédios, às pedras, às árvores, ao piso, a todas as coisas
pequenas em que reparo, aos passos de uma vida cindida em dois. Em dois quando
saí de casa para a universidade e sem cerimónia de destruição um dia três anos
depois voltei já não havia casa. Só o fantasma da minha terra de infância e
adolescência perante o cru do meu corpo quebrado. Adeus, quarto crescente. E
eis porque comecei a caminhar literalmente. Para simular, percorrer o acto da
perda que nunca vi. Até me achar tão perdido aí, no caminho não literal que o
caminhar literalmente me atalha, à frente do fantasma de bairro nenhum: o que
resta do meu tudo. Nada. E consigo querer chorar, querer escrever isto, sentir
que ainda resta um pouco de mim ao ver como as coisas mudaram com o passar do
tempo. Sem ser só passar o tempo.
Acessos de
memórias, error impele horror na pele: herror. Trinta! Mas às vezes mais que herror
andar, andar, andar e angústia infinita, o caminho à frente, algo na ponta da língua
a tocar na linha do horizonte. Como chegar aos portões de um paraíso sem dono,
entrar nas bordas do artifício, a silhueta da loucura e encontrar mais que um
mundo situado nas possibilidades do passado enquanto único deus; paz, mais que
desejos não cumpridos. Entrar para sair, caminhar literal para chegar ao não
literal do bairro nenhum, e depois isto. Isto é o que fica para além da noite
no bairro nenhum: sou uma criança num trilho num bosque de dia. E entretanto
não sei. Se a sou. Algo incrivelmente familiar, aquele algo na ponta da língua
e por intuição eu passo a ter a certeza. A certeza toda, patética metempsicose
peripatética, que estou a viver um antes de ter nascido; que esta é uma memória
da vida única, irrepetível e pequena de outra pessoa que veio e foi. Estranha e
num bosque, apenas em error impele fulgor na pele. Pelo que então deve ser isso
que este lugar transfronteiriço é: qual mundo-espelho de um conto cautelar, o
antes de ter nascido as memórias de outra pessoa, uma criança que ainda não me
tem. A mim que sou a perda mas a própria razão que recoloca a criança em
movimento e vida. As suas brilhantes sensações novas, a sua diegese irrepetível,
o seu universo estético único. Eu com bolhas de iridescência em vez de olhos numa
transmissão atmosférica do seu intransmissível. E por intuição, chorar, sorrir
esse cosmos-morfema; saber que um dia vou voltar a ser criança de alguém. Sem
que nada, nada disto tenha que ver um pingo que seja com tutelas, grandes
feitos, lideranças empáticas, heróis sagrados ou seculares a pisarem o chão com
o poder macio do céu porque se apoiam nos sapatos dos outros: “esmagados,
dessolados, a desigualdade não passará!”. Nada! Nem sequer o escarro polido dos
escravos com cargos cujo “mestre é o subalterno” a co-colocarem-se só a meio dos
sapatos dos outros.
Eu. Eu
drogado, esotérico da única ilusão que existe: eu. Eu entre outros eus. A
epifania do mundo-espelho de um conto cautelar a desvanecer-se e fica comigo,
todavia, um pouco de caminhar à noite em bairro algum. São esses raros
instantes em que ainda pulso empolgamento, dinamismo, ainda há um vestígio de
flutuar acima da Terra longe da terra. Ver futuros, não estar sequer certo que não haja anjos por
snifar de uma outra, nova idade de ouro a ser vivida no presente. As piadas
internas com a T. que por esta altura já davam uma enciclopédia; as nossas
longas caminhadas por Coimbra e arredores; à beira-rio: estarmos sentados a
conversar no Parque Verde durante o Verão; divertimo-nos a ver (e rever) os
(mesmos) cães e gatos; conhecer uma cidade de cor, sentir-me em casa nesse
espaço enorme como só me senti nas quatros paredes da casa onde cresci; comermos
juntos o conforto e sabor telepático que uma banal refeição a dois consegue muitas
vezes ser; o nosso cinema a partir dos sofás e todas as variações/recorrências
temáticas ou de género, como quando transferimos os nossos medos maiores em
anestesiantes filmes de terror; poder trabalhar a partir de casa, longe (mesmo
que só fisicamente) de “reinos de senhor”, e escrever a minha tese noite
adentro. O quão especial e significativo é escrevê-la para mim depois do pesadelo
dos últimos anos. Mesclado com o quão assustador, perturbador e desafiante, vê-la tornar-se num
Godzilla, um monstro expressivo do que me fizeram a mim. Prometer-me que um dia
entre todos os bloqueios, manipulações e chantagens - e não me importa que
socialmente insignificante -, hei de explodir isto com espinha dorsal cá para
fora. Nem que me expluda com isto também. Enfim e sem fim neste texto e na
cabeça volta sempre… o medo, o nojo, o desespero ao pensar em fraudes tais que
aprenderem a capitalizar com voz terna o próprio estigma face à saúde mental.
Mais insano que isto, há?
Mas o algures
algo iridescente do mundo-espelho em mim, fui vou resistindo, reequilibrando-me
quedas sem conta na rotina. Agarrar-me ao sorriso tímido daquela que é talvez a
rotina mais feliz da minha vida inteira, sem necessidade de encantos nostálgicos.
Ao mesmo tempo, vem o medo que essa rotina acabe, o medo a agarrar-me a mim… Porque
ok, sim, antes: respirar canções preferidas via fones nas viagens de autocarro
entre casa e escola. Os filmes, as séries, a referida descoberta. Não existir
mais nada senão o momento e a determinação quando começava mais um jogo de futebol
ao fim-de-semana. Os hábitos tornados pequenos rituais, encharcar-me de água antes do apito inicial,
os pacotes de açúcar ao intervalo, usar as mesmas caneleiras leves ad
aeternum. Acabava um jogo vinha outro, acabava uma época vinha outra. O
polidesportivo, os meus gatos, os colegas de turma ou de clube porreiros
comigo, a magia outonal com aroma a pulseira rosa do meu único relacionamento amoroso, as paixonetas invisíveis,
a constância de algumas dessas caras, aprender a exprimir-me e personalizar-me
em chats, redes sociais, aqui no blog.
Mas a maior
parte do tempo antes: a escola um lugar inóspito donde estava desesperado por sair
desde que acordava nauseado e sonolento com a ideia de ir para lá. A minha
ansiedade social, complexos brutais com a aparência, a lógica da lei do mais forte
e do mais velho no recreio (que agora bem vejo de onde vinha…), eu mesmo ter
sido um idiota conivente ou participante. Usar alguém que gostava de mim e de
quem gostei antes por uma amálgama de vingança mesquinha e autoprotecção
emocional. Sentir-me profundamente só e desconectado por mais que gostasse de
passar muito tempo sozinho. Ir abaixo, achar-me inútil ao cubo, um poio
ambulante quando o futebol me corria mal. Aproximar-me de pessoas que se
aproximavam de mim ao ponto de parecermos amigos: acabar usado para preencher
espaço e logo depois deitado fora. As precisas paixonetas invisíveis, em
simultâneo do que mais lamento por ter vivido a intensidade passional daqueles
anos num quase nada. A distância impossível para a realidade do meu vago sonho mediático, cinematográfico de um grupo de amigos inseparáveis a produzir eternidade numa casa na árvore. Contar, cortar os dias do calendário até às férias nos cadernos durante
as aulas, pois a saída era o futuro, o futuro era a saída.
Chegar à
universidade com um certo entusiasmo de mudança e melhoria, embora já demasiado
desgastado e inseguro no que tocava a relações interpessoais. Ter orientado e
bem todo o meu percurso para a única esfera em que tinha jeito: escrita e artes,
essa junção. Como nunca, adorar a maior parte das aulas per se. Desde o
início gostar da autonomia, fixe e necessária a possibilidade de a desenvolver.
Porém a obsessão generalizada com praxes; colegas mais tempo separados porque
sem grades da escola; as muitas pessoas que naquele período já tinham um
círculo social mais ou menos definido. Tudo artificial, forçado, mentiroso. Não
conseguir fingir, nunca consegui fingir a sério ou quando muito a minha versão
dessas gentilezas quotidianas foi e é desaparecer, afogar-me a arder no pano de fundo. Meros
meses passados de Setembro de 2012, sentir fechado no quarto o desespero solitário
da escola em esteróides e quantas vezes, abominável homem do gelo, já nem conseguir
chorar. Situar-me ainda mais sozinho se fora do quarto: festas, jantares, cafés, conversas
de corredor. Hipersensível em grupos, conferir incontrolável um peso planetário ao mínimo gesto alheio; doer-me no cotovelo a faca verde de possibilidades impossíveis à minha frente. Começar a temer, a sério e primeira vez, que não havia saída para o
futuro, que ia haver um bairro nocturno nenhum. Cedo amanhã.
Em suma, não se trata
de uma questão sistemática de olhar para trás e considerar que devia ter feito x
ou não ter feito y. Não porque agi de acordo com o que sabia na altura,
mas porque na maior parte das situações estava em causa uma desconexão
emocional, desencontro de interesses ou uma incompreensão de convenções sociais
que jamais se resolveriam com ditames best-sellers à maneira de “tem iniciativa”, “sê mais
aberto”. Ademais, pelo menos a partir dos 15/16 - havendo vontade recíproca -, sempre
me conheci capaz de ser vulnerável com quem puxasse o assunto ou se aproximasse
de mim. E, ademais do ademais, sempre tive o pingo de noção de não despejar os
meus problemas (até porque de cariz emocional) em cima de alguém. Afinal, este blog
serviu desde 2009 para arquitectar tal saco de autopancada. Para ser rigoroso, passada
mais de uma década, com altos e baixos, com todas as dificuldades de distância
física e contextual, até me mantenho amigo da pessoa de quem mais estreito fui no
secundário. Algo que valorizo bastante, mas com o tempo - e isso manifestou-se muito doloroso,
uma forma de desistência - aprendi a permanecer sem expectativas nessa e em
qualquer outra relação.
Excepto uma. A
T. O impossível. Com todo o risco que isso acarreta, ficas tão próximo de alguém,
tão próximo em intensidade, constância e prolongamento que já não dá para
destrinçar o “eu” do “ela” sem um apocalipse interno, identitário, perceptivo. Como
se pela primeira vez na vida escolhesses (a cravagem da) família nuclear. E a
T. o impossível porquê? Setembro de 2014, 21, terceiro e último ano de
licenciatura. Chegado aí eu já me entendia irremediavelmente sozinho no mundo. Para
além de todo o contexto escolar e universitário que tracei, estes antecedentes
mais directos: Fevereiro de 2014, calhar-me uma tampa bem calculista quando
gostei de alguém a sério pela primeira vez em anos (e arrisquei expor-me inédito em todo o sempre). Do género “dar bola, elogiar-te e iniciar
conversas fora de um contexto físico comum quando nem sequer quero que sejas
meu amigo porque já percebi que gostas de mim e simplesmente aprecio a atenção,
que se lixe que isto te vá magoar”.
Agora encaro
com nostalgia e um certo apreço aquilo a que esse episódio acabou por levar. A
começar pela própria maneira bonita como me sentia profundamente aberto, vulnerável;
ir ver o Her sozinho ao cinema uma semana depois; os dias de me repensar
enquanto indivíduo, pedir desculpa a quem inflingira a mencionada “vingança
mesquinha” e acabarmos por retomar contacto via mensagens; a ambiência ao
descobrir Red House Painters. Deus, o pôr do sol dissoluto da “Grace
Cathedral Park”… Só que naquele então de Fevereiro, in loco, quebrei de
vez. Tremores, falta de apetite, a incompreensão suprema com a instrumentalização
alheia (nem eu sonhava o que estava por me ser presenteado em termos
institucionais). Tentar chegar tarde, cortar nos intervalos e corredores, sem
poder evitar o contexto partilhado das aulas. Fora isso, eu estava-me irreconhecível
ao ponto de, em detrimento de me apetecer estar sozinho, me palpitar uma urgência
frequente em sair de casa, procurar contacto físico interpessoal, envolver-me
em actividades extracurriculares…
Se durante a
escola tinham existido caras comuns, vários colegas por quem ainda hoje guardo
carinho, a solução Universidade revelara-se um deserto, um nada insignificante absoluto.
Assim, creio que para mim aquele acontecimento não tinha sido o som da rejeição
de humano x, tinha sido o som de ficar sozinho para sempre após uma última chance.
No geral, durante a licenciatura houve longos períodos em que não devo ter
dirigido uma palavra a ninguém senão a familiares. Aguentando-me nas notas
excelentes e volvida uma relativa recuperação nas férias de Verão, lembro-me com vividez de regressar a Coimbra em Setembro de 2014 e desatar a chorar. Pressentir,
ressentir um lugar que associava a toxicidade, não querer nunca mais estar ali
sozinho. Depois era um pouco isto na minha cabeça: mais um ano para concluir,
focar-me nos estudos e voltar a casa. Porém, eis o impossível – cujo relato fui
sempre evitando neste blog por uma certa e sintomática desnecessidade emocional;
e porquanto não pareceria o impossível sem esta longa narrativa de origem.
Uma mesma cadeira
opcional escolhida, um conjunto de acasos, ficarmos sozinhos à beira da porta
da sala errada. Entretanto, da minha parte, fora esse primeiro episódio,muitas reticências em sequer conversarmos. Um interregno, mas logo em
Outubro encontrarmo-nos a caminho de casa, descobrirmos que vivíamos na mesma
rua. Começarmos a falar a partir daí. Trocarmos mensagens. Um trabalho que requeria
uma ida ao cinema. Irmos os dois. Jantarmos no shopping. Eu achava que algo
estava a acontecer e ao mesmo tempo sentia-me estúpido, a caminho de uma réplica
de Fevereiro de 2014. Abrir-se um pretexto, uma brecha emocional ao falarmos, contar-lhe
tudo e ficar um caco. Depois passarmos a
noite na rua numa conversa melancólica que mudou a minha vida para sempre. Acordar num baile de hesitações e inseguranças. Ir ter à tua porta, vires ter à minha, diários sairmos siderados os dois. Contudo, em poucos dias,
semanas tudo com uma fluidez e imediatez impossível. Tempos livres, interesses,
estudos, refeições, casa, piadas, problemas, caminhadas, rotina. Os primórdios da ROTINA! A
T. T de tudo. Tudo juntos. Setembro de 2014 a tornar-se irónico, Coimbra progressivamente
a fazer-se o espaço mais importante e reconhecível da minha existência. Casa.
Conforme indicado, desde algures
no secundário que sabia ter essa capacidade de partilha e intimidade em mim,
mas, dane-se, senti-la sempiternamente embotada, inútil... Depois de chofre
isto! Isto a compensar por toda a angústia, sonhos, solidão, desperdícios de um
fantasma… Redescobrir-me recíproco no universo inteiro de outrem. Hoje continuo
convencido que se não tivesse conhecido a T. em concreto não ia conhecer nem
relacionar-me com ninguém a este nível. De tal maneira que a respeito de verdadeiro
contacto humano nada mudou: o dito amigo da escola à parte, do presente já nem
restam conhecidos, caras comuns, colegas, carinho. E eu estou de bem com isso. Há
9 anos. Nunca mais senti aquela desesperante solidão infinita que tomara conta
de mim aos 19/20, mas que já vinha em crescendo desde que ganhara consciência
de mim no despertar da adolescência. Um estar de bem com isso também ciente de que
se por algum motivo a T. sair da equação, o fantasma de outro tipo de bairro
nenhum volta em fuga (embora eu julgue que voltaria em fuga agradecido ao universo indiferente,
com uma certa serenidade de realização). No fundo, aceito e quero a fragilidade e a
(inter)dependência de viver com isso.
E não estou a
tentar vender a perfeição, o paraíso de desencontros e discussões inabolíveis
desde o princípio. Eu mesmo acho que vou ter sempre aqui um certo lado de lobo
solitário moldado à maneira de como cresci e adolesci. Às vezes não ajuda, não sou
fácil de tão frágil que sou. De qualquer maneira, fiquemos com isto: a T. inventou
haver nocturno num bairro total. E perante toda a merda inevitável de saúde e
perante toda a merda evitável da universidade, foi a única pessoa que amparou
tudo. Sabendo que o pior do inevitável e do evitável está para vir. Imutavelmente,
a pessoa mais importante da minha vida.
***
E eu bem
gostava de terminar este texto patético com a frase acima. Lamento, não dá. Tal
como logo em 2015 a decadência física batia à porta ou em 2017 sentia os
primeiros indícios do submundo académico, eu circulo de novo para o bairro
nenhum deste texto. Cheguei aos 30 - dia 21 de Setembro de 2023 - enquanto
escrevia este post. Atravessei todas aquelas músicas tocantes com títulos de idades
que só podia conjugar no futuro. Só ter 16 e a “23” dos Jimmy Eat World: “You’ll
sit alone forever if you wait for the right time / What are you hoping for? / I’m
here, I’m now, I’m ready / Holding on tight / Don’t give away the end / The one
thing that stays mine”. Ter 20 e nada e a “Twenty One” dos The Cranberries: “I don’t
think it’s going to happen anymore / You took my thoughts from me, now I want
nothing more”. Não poder reter os 20 e a “24” dos Red House Painters: “So it’s not loaded stadiums or ballparks / And we’re not kids on swingsets on the blacktop / And I thought at fifteen that I’d have it down by sixteen / And twenty-four keeps breathing in my face / Like a mad whore”. Perplexo pelos 28 e a “29” de Gin Blossoms: “Only time will tell / If wishing
wells / Will bring us anything / Fade like scenes / From childhood dreams /
Forgotten memories”. Ainda a “21” de The Starting Line ou a “26” de Paramore. Boa
parte dessas letras a relatarem tanto conflitos internos agora resolvidos
quanto o atropelamento e fuga do tempo. Atado à T., o meu eixo existencial deixara de ser procurar
inutilmente uma sensação de segurança e eternidade em relacionamentos interpessoais.
Ou de, perante um vazio nesse departamento, ter em obras, objectos estéticos d’outrem um deslocamento vicário de
melhores amigos impossíveis.
Então, à medida que
eu interiorizo a minha decadência física antecipada como um processo de
anulação, amputação da expressão corporal e como uma questão de aprender sucessivamente
a existir com contentamento numa prisão mais apertada, outro eixo
existencial. O entorpecimento entranhado da escola enquanto lugar inóspito a
provir desentorpecido e estranhado das traseiras da mente para mostrar o
fundamento hierárquico e “bullyesco” de relações de tutela de adultos para
adultos. O porquê de ser inóspito, um urgir jorrar os calhaus que meteram na minha água. Bem-vindo à lógica da lei do mais forte para
impedir a lógica da lei do mais forte! Assim, desta maneira: primeiro garanto a
superioridade, define-se que ganhei. Depois, aconchegado na polícia, no
exército e nos tribunais que me a defendem, defendo a paz e a democracia em que podes
(semi-)escolher a decisão tomada de escolher líderes que vão escolher por ti.
Assim assim
assim, estar deveras consternado com as grandes questões do nosso tempo. O
clima, o machismo, a pobreza, o racismo, o idadismo, o neoliberalismo! Oh deus,
tanta injustiça no mundo para usar, manter o meu poder para benefício dos mais frágeis e oprimidos (até me podem aumentar
os impostos que escondem que sou beneficiado a priori, qual plano-poupança
da norma). Assim assim, ser a
vantagem empedernida de um papa e dizer que “o único momento em que é lícito
olhar alguém de cima para baixo é para o ajudar a levantar” sem que tal se
trate de um programa de humor. Assim assim, nós ao contrário de “inserir
partido ou ala x” não usamos o poder para benefício próprio, motivações
egoístas e corruptas. Contra as pessoas más que não estão à altura da sua posição, chama-se bem-comum o desígnio que nos chama!
O meu jorro, queda de água, atrela-me num desviozinho
para a universidade. Os tais essencialismos sociológicos: uns toques foucaultianos
de o “poder está em todo o lado” ou uns pós spivakianos de a “ideologia não é um véu que se possa
descobrir pelo que precisamos de uma revolução lenta da imaginação” em que se
lixe dizer que dessarte posso eternizar a imprescindível prevalência das
minhas condições materiais catedráticas que tanto beneficiam a humanidade. Até porque,
recorde-se, o “subalterno é o meu mestre” e há inclusive quem – distância irónica
– jogue ao toca e foge com a brilhância da sua autoconsciência: “reconheço que
sou privilegiado”. Reconheço que sou e tenho a lata de continuar a ser até
porque vai se a ver tu também és porque isto tem que ver com categorias
discriminatórios históricas (e.g., viver no ocidente) e não com agências
específicas que controlam corpos alheios e o seu acesso aos recursos no aqui e
agora.
Nada nunca
posto assim, nos termos em que existe já sem palavras (porque vivemos num
estado de direito, as regras são iguais para todos… consoante o estrato): nós defendemos
o nosso direito hierárquico a definir quem tem emprego, a definir quem e como te podes exprimir, a definir a tua inferioridade relativa à nossa superioridade. Afogado em pedras, aqui estou eu(?), de foco em sufoco narrativo, continuando à espera dessa descrição fenomenológica. Sem se acenar a bandeirinha de
que outros fariam igual; que se trata de uma matéria de conhecimento e a exclusão deve-se
a motivos técnicos, de adequação; não temos nada de pessoal contra si (que se
foda que seja exclusão na mesma e que seja eu a exercê-la). Ou ou ou… a cartada
do conhecimento científico contra o populismo e os anti-intelectuais – dizem os
amantes da democracia que a preferem bem passada com molho de elite; dizem os
supremacistas filantropos que fazem de “intelectual” uma designação estatutária
de génio em vez de um mero tipo de actividade ou trabalho. Mas mas mas, escute
pessoa que tem de amadurecer para ser como nós ou continuar nosso servo (se não quiser ser mestre para mudar as [suas] coisas por dentro ninguém lhe
faz mal desde que aceite a sua condição de servo com que lhe fazem mal; pode,
aliás e ainda, recorrer às instituições que ordenam a sua condição de servo
para propor que os mestres que deixariam de ser mestres sem si ponham termo à
sua condição de servo), escute:
as contradições fazem parte da condição humana e das sociedades complexas,
jogar com elas é um sinal de inteligência. Algumas dessas ideias são muito
perigosas (ok, mas para quem?) nos tempos que correm, precisamos de salvar o
planeta em nome das (eternamente, que jeito dão) gerações futuras. Chore-me só um rio por este clima! Vê? Não consegue chorá-lo! Pode ter razão num ou noutro ponto, mas o seu pensamento culminaria num vazio de poder que poderia ser aproveitado pela extrema-direita
que anda aí fora (dentro das nossas instituições democráticas). A história – e é
importante nunca esquecer o holocausto, o colonialismo, a escravatura, mas não
tanto como afirmar que é importante nunca os esquecer, pois vivemos um grave
problema de falta de memória histórica em tempos de pós-verdade, inteligência
artificial, bolhas de customização algorítmica e corporações demasiado
poderosas que estão a minar a democracia que a todas, todes e todos serve –
mostra-nos a facilidade perigosa de levar o povo pouco letrado a acreditar em
soluções fáceis. Cultos de personalidade imagine só! Pelo que felizmente temos
Sua Santidade, o Magnífico Reitor, Sua Majestade, Sua Excelência o
Primeiro-Ministro e a Senhora Professora Doutora para combater esses cultos de
personalidade. Já Karl Popper dizia e é bem actual que se tolerarmos os intolerantes estes dominar-nos-ão. O paradoxo da intolerância, acabar-se-ia a tolerância! Sem nós, os violentos com força e liberdade para escravizarem os fracos! Em último recurso, como a cara pessoa imatura está assim um pouco para o extremista e radical, sugiro-lhe cortar parte do seu texto (os progressistas com poder sobre ti amam “apenas sugerir”, diga-se). De seguida, escale em reapropriação um governo mal ocupado. Aí, a favor da confiança contra o medo, proclame moderada: “A.C.A.B.-se com a violência! O Estado é a nossa providência!”(a.k.a. emule um abolicionista... da mudança que ama violações sem mãos).
(O meu corpo, o meu espaço, o meu tempo, o meu eu desaparece do texto vomitado para dentro de alguém a ser alguém na vida.) Pessoa
imatura, o que propõe? (perguntam enquanto agem o roubo da possibilidade de
existir o que propões, porque no fundo a pergunta é mais o que propões dentro de
ficar tudo na mesma na minha tutela só representativa nada que ver com trela.).
É contra a democracia? As instituições são importantes! Isso seria anarquismo
(entra em cena o momento argumentativo em que afirmar a léria de um rótulo
substitui qualquer descrição de relações materiais no aqui e agora). Está a ser
totalitário, está demasiado preso ideologicamente (faz de conta que não entra
em cena a prisão muda do meu princípio de autoridade que, sejamos sérios, tão
benévolo se afirma que define os limites do meu poder a pensar na garantia plural de que
órgãos homólogos possam exercer o seu poder na porta ao lado; ademais, revela-se
deveras importante enrijecer muito bem legalmente o que constitui ou não abuso até
para efeitos de autopreservação do que constitui o abuso como se fosse uma
questão metafísica de fita métrica). No nosso regime menos mau de todos (não se
pode exigir perfeição) os que já foram tentados (mais uma vez vá lá estudar
história), há separação de poderes entre quem o tem. Pluralidade. E se não
gostares deste órgão, podes recorrer a outro, é como os empregos, cada um é
livre de trabalhar ou não com quem quiser tal como cada um é livre de te
empregar ou desempregar dentro das regras de o poder fazer (se não gostares cria o teu!) até te excluírem de
tudo e te deixares morrer à fome porque recusas subir mas também recusas descer
para fazer mais broches; se o governo for constituído por pessoas boas nem chegas a morrer à fome porque,
caridade, a pobreza é um flagelo e as estatísticas devem acompanhar a média da
OCDE.
Há aí, em
algumas das suas palavras, insinuações difamatórias, atentados à honra e ao bom
nome (para eles terem bom, “eu” não tenho nenhum). Demando um julgamento justo, todos somos inocentes até prova em contrário
e esse constitui um pilar das nossas sociedades civilizadas e avançadas. Portanto, vou
processá-lo, acredito na justiça e nas instâncias competentes que em sexo
tântrico imaculada concepção com o poder legislativo definiram e definem
todos os santos dias (às vezes o papa e o papá amnistiam) toda a minha vantagem social para que nós os dois – eu e a
minha instituição contra você – possamos ter um julgamento de igualdade perante
a lei. Deveria ter enveredado por outro caminho. Do género: citar preocupada e
indignadamante estudos com revisão por pares, avaliação científica que
comprovam que os mais pobres são mais pobres e sofreram mais por isso. Ou então
de género: vivemos num patriarcado em que os homens instrumentalizaram uma
definição identitária para circunscrever lugares de poder e exploração reprodutiva
noutros corpos, a começar por mulheres, inclusive na família enquanto instituição.
Já pensou em reduzir o patriarcado a uma pila ou quanto muito a desconstruir
esse essencialismo num simples ser também conservador de direita, dizer coisas
sem elegância, falar alto e mandar arrotos? Assim assim assim, poderia chegar
ao limite do eticamente discutível nas grandes mudanças sociais que estão a
ocorrer no nosso tempo. Destila o homem do patriarcado - a pessoa das próprias
condições materiais que construiu para justificar oprimir outrem - e faz de
conta que uma plena igualdade estatística entre identidades colectivas em cargos de
poder/liderança (qual tokenismo anti-tokenista) é uma grande conquista social não resumida a umas mulheres com direito a
oprimir outras mulheres, homens e o que quer que possa imaginar (se calhar, só muito se calhar, convinha explodir com a fixação de géneros).
Faça também de
conta que 1) as mulheres com poder não se tornaram homens a fingirem ser
mulheres (no máximo, queixe-se de um feminismo liberal usurpador, marcando a enorme diferença entre a CEO exploradora e a Senhora Professora Doutora dadora); 2) os homens sensíveis cuja masculinidade retrógrada está em
desconstrução são aliados que de maneira alguma são homens que se mantiveram
homens a fingirem ser mulheres. Por último, 3) sugiro defender o enrijecimento legal de um
terceiro género contra os papéis e policiamento de género (é fulcral definir
quem é trans a sério!), colocando ume enebê num lugar de poder para cessar com
qualquer alegação negativa similar às do ponto 1) e 2) pois tal alegação teria um fundo transfóbico. Caso
alguém lhe aponte essa falsa instrumentalização de mau tom sarcástico, afirme firme “reparação histórica! Não
à cegueira de género que quer bloquear a mudança! Uma por todas, todas por uma”.
Saiba usar o interseccionalismo (contra as antiquadas narrativas mestras) em
seu proveito porque eu até posso ser uma mulher com poder mas sou negra, logo
está equilibrado porque a identidade é múltipla e complexa, logo vá educar-se
sobre a matéria. Pode tentar com outras identidades historicamente
discriminadas, se preferir. Vai receber em cartão ou dinheiro? Ok, faça o favor
de se introduzir (enquanto falo) na máquina.
De repente, de dentro de alguém, sentir-me cuspido invisível no lancil de um passeio no bairro nenhum. Noite e tento nadar no escarro informe que estou, mas não sei nadar, merda a respiração!, e só trouxe sapatos de ir de vela. E o número grande a probabilidade respirar pesado! Huff, o foco, sufoco narrativo, foco anti-ilumina que... Tenho uma
outra, melhor ideia!?E se perante uma
catadupa de casos de assédio (nem todos a sério) na academia, formasse uma
linha de investigação no seu Doutoramento em relatos auto-etnográficos? Quiçá
pudesse clamar o valor considerável dos relatos na primeira pessoa, conseguir
financiamento de uma organização para a investigação científica definindo quem tem bolsas para desenvolver a história do “eu”
dentro do mero constrangimento técnico imprescindível dos editores e avaliadores de revistas que decidem o que é trabalho
(num mundo em que se paga por obedecer e não por se trabalhar) ou de coordenadores
progressistas de retaguarda vanguarda que decidem o que é
auto-etnográfico (difamação à nossa ca[u]sa que não deve ser prejudicada não é de certeza). Sabe, cara
pessoa imatura? O bom pessoismo não tem limites. Os recursos sim, são
limitados. Pelo menos depois de os acumularmos, tendem a não dar para os outros…
Felizmente, em contrapartida, o conhecimento é um recurso ilimitado que eu
acumulo em oferenda sacrificial para encontrar uma cura para a escassez de
recursos limitados.
Escarrado no lancil e uma sensação de arrasto de um lado para o outro para o outro. Como que o peso de uma pedra em cima do meu baile de baixa sociedade. O cúmulo de sentir falta de memórias perdidas por tactear no bairro nenhum. Por favor! Chega! (logo vi que era desses!) Pronto, chega, então, que seja.Huff, o alívio do peso em cima o foco, o sufoco, o foco. Sem perceber volume no corpo, rastejando para o meio da estrada, aquilo que percebi é que em todos os exercícios de domínio, obcecado que esteja
em encontrar uma justificação mais específica ou generalizada para o seu
exercício, não irei encontrar nada por trás de uma ornamentação de bem-comum. Nada
salvo a própria brutalidade prepotente e circular em que o acto de dominar se
define a priori. Se abandonássemos a treta esotérica da experiência
quantitativa enquanto argumento de privilégio laboral, talvez computássemos ao
mesmo tempo um outro papel da experiência quantitativa nisto tudo. Tão só ver a
mesma cena acontecer vezes sem conta. Os mesmos cargos-actores (roda bota entra... shiu!), os mesmos truques (quem te desdenha, pode-te comprar se te calares e aprov... FOCO!), a
mesma missa eleitoral (vivemos tempos de grande incerteza!, peço desculpa a incerteza tirou-me o foco... Ok, retomemos), a mesma chantagem se pretenderes falar abertamente do
que fazem no teu trabalho, o mesmo absurdo de uma instituição se
desculpabilizar de injustiça y com a criação de um observatório que cria
uma provedoria que cria uma comissão para “lutar” contra a dita injustiça. A repetição
do ancestralismo. E, tendo noção disso, ou se tem nojo, um asco profundo da
reprodução repetitiva da dominação e de quem a repete; ou se é precisamente quem,
sabendo a arte bem-adaptada de ficar calado, absorve daí toda a vantagem,
navegando e moldando percepções públicas para vestir o seu domínio de acordo
com as modas hoje.
É na subsequência
dessa cobardia parasítica – do que vi e vivi através dela – que eu deixei de acreditar
em “comunicação”. Demasiado conspurcada pelas “maneiras de dizer que não sou eu”.
Porque é isso que, paradoxo, define a estrela toponomizada. Lucrar ao serviço
da humanidade roubada a um alguém explorado, controlado. E esse o maior dos
valores. Tornas-te “eu” pela via pública de “todas as maneiras de dizer que não
sou eu…”. Pelo que já não acredito em comunicação e, todavia, resta-me – horror
à solta, tudo a falir, catastrófico, misantrópico – recorrer-lhe em desespero.
Tentá-la. Ali entre finais de 2018 e de 2020, muito devido a recorrentes episódios
universitários não a sério, tive até um bloqueio com a escrita. Não poder nem contar comigo! Não foi, não é
nem vai ser fácil - perspectivas zero - aceitar que orientei toda a minha vida para a junção
“escrita” e “artes”; que passei toda a porra do meu percurso escolar e
universitário com notas excelentes só para me cagarem na cabeça. Tão-só suspirar ser
o meu canto no mundo, ter condições para me exprimir livremente, dedicar-me em
exclusivo à única prática em que tenho jeito precisamente por, por ter jeito, me ter dedicado a ela enquanto única prática. Melhorar, melhorar, partir sempre do pressuposto que se não
tivesse espaço a culpa? Minha! E depois começar a captar tudo absorvido pelo
networking, as trocas de favores, os convites ou a submissão a eminentes
senhores doutores e mecanismos de censura institucionais sob o pretexto de “rigor”.
As dores, o desgaste físico, a idade a acoplarem-se ao escarro informe que alguém me cuspiu e, sei lá, lá me volta uma tridimensionalidade estragada. Levanto-me sozinho à noite no bairro nenhum. Sem reminiscências por tactear, com mais tecnicidades,
adequações temáticas, fórmulas como limites de palavras, seguir um modelo que tem uma secção
intitulada “Introdução”, “estudar autores relevantes” ou uma tal “linguagem
académica/científica” clara, formal, impessoal, objectiva, com frases curtas, sem marcas de coloquialidade, não exibicionista (exceptuando o Derrida ou um primo génio, esta normas de submissão antipensamento quadrado e pró-inovação são iguais para todos segundo os decisores que são todos primos génios FOOOCO!). É só escolher o método “não discriminatório” para a exclusão entre
os vários à disposição. Garantido é mesmo que primeiro me dedico a fundo a
qualquer trabalho que completo com autonomia, mas na surrealidade primeiro está
a sacrossanta figura do seleccionador imparcial à porta fechada para te escrever
cinco linhas de bingo de banalidade formulaica. De modo a que que se chame “científico” e lá fora se
possa justificar superior, porque científico. Podes escolher entre a decisão de
intermediários que não servem para avaliar mas para excluir o que não pode
sequer existir antes. Nisso tudo um processo sinedóquico do que significa deter poder sobre
alguém naquele meio, num qualquer aqui e agora – preservar, instituir uma elite,
um clube de amigos refastelado nos seus jogos de gabinete tomado como nobre nata
da sociedade. E eu apercebendo-me que as próprias classificações excelentes são quase
motivo de piada e nada representam para as mesmas pessoas que salientam a
importância da formação e se sustentam num pedestal pelo “mérito”. Posto que,
acima de tudo, a sua superioridade incontestável e “experiente” se afigura incomparável
à tua inferioridade “júnior” inexperiente. Por seu turno, os critérios movimentados de maneira a manterem-se sempre a precisa e conveniente noção de mérito no dicionário dos já superiores. Aliás, uma das razões para a mobilidade social mediante alfabetização se configurar um perverso embuste: tão cedo quanto um grau de estudos se generalize, as elites manobram, sobem, apertam os requisitos de entrada eternizando a desigualdade em estratos. E, clímax, esses que corporizam a superioridade incontestável aprumados para moralizar; ganharem uma competição para a
qual te estás a cagar e terem a lata de te pregarem “mais cooperação, menos competição” ou “menos
inveja e sede de protagonismo”.
Com copiosos
contratempos pelo meio e obrigado a vários recuos de denúncias, sinto que acabei
por ganhar nos últimos três anos uma capacidade expressiva via escrita que
nunca tive antes. Sinto que distanciar-me do meu contexto universitário
específico me limpou a cabeça de muita porcaria pré-definida, convenções,
formatos, ideias feitas. E talvez a maior, pior das ideias feitas seja mesmo
partir do princípio que o que uma figura de poder escreve ou diz está certo,
deve ser seguido. Sendo claro que só o pôde/pode sugerir alcançar (e assim to construiu mentalmente) pela acumulação anterior dos
recursos materiais que te roubou, e essa é a parte difícil: saber que a minha
sensação de liberdade mental que me obrigou a vomitar, escrever um monstro do
que me fizeram enquanto tese não poderá existir no mundo. E aqui estou eu, a
escrita desde a adolescência uma compensação ao embotamento da minha fala e do corpo hiperdisciplinado pela escola. Música, pintura, outro acto que conseguisse parir sozinho… Um zero desde cedo. Infelizmente,
fiquei reduzido a um meio expressivo. Agora, em adição, a escrita na qual me
afunilei, a única actividade que me resta, completamente assoberbada por uma dupla
impossibilidade comunicativa. Apesar da melhoria de capacidade, maleabilidade
expressiva – como se tivesse desbloqueado uma pedra do cérebro –, não só parece
que me tornei incognoscível para outros seres humanos (e vice-versa) como não
tenho condições materiais nem vislumbre delas para expor o que o meu corpo desespera por expor.
E no fim de
tudo, de facto, já não me interessa se ninguém quer saber do que se me urge
dizer; se estaria apenas a denunciar carrascos a outros carrascos exteriores; que
no meu tempo e espaço de vida não haja perspectivas de as circunstâncias mudarem num
sentido de “desopressão”. Estou demasiado doente disto para continuar a aprender a
abafar, qual desfibrilhador invertido. Cansado de ver noticiários em que entro na narrativa para me
sentir um freak parabólico do outro lado da Terra. Ver,
ver, ver as coisas desaparecerem… um simulacro de morte. Se a vida é sobre
prepararmo-nos para morrer, aceitá-lo, sem dúvida que fiz os meus progressos. A
necessidade da tese que estou a escrever vai-me consumindo e julgo que entre
ela e mais uns textos, que por motivo de foco tenho de deixar de lado agora,
reside o pouco. O pouco que me resta no bairro nocturno. A seguir, acho que só me falta caminhar à espera... Por ora, a melhor parte de ter feito 30 anos é que não os volto a fazer, ou, não sei, talvez dizer isso seja apenas
triste, deprimente.
Vou persistindo sozinho à noite no meio da estrada de bairro nenhum. Um único foco em nada, nuvens e estrelas a flutuarem acima da Terra, o impreciso habitat do meu antigo potencial. Desligo-me e essa moldura ficcional do bairro nenhum acaba mais ou menos assim, suponho. Um pouco conforme após algumas
oscilações, em 2018, ainda antes do âmago universitário “não a sério”, tinha atingido um estado de autocansaço em que basicamente decidi cortar-me de redes sociais estruturadas
a partir de perfis pessoais, círculos de contactos - o que seria impensável
para o meu eu adolescente e o seu modo de se dar a ver ao mundo. Disse adeus
aos movimentos de avanços e recuos que, entre mágoas e restabelecimentos, foram
pautando a minha abertura a seres humanos, entrando numa persistente retracção
absoluta. Está sempre uma nova forma de procrastinação à espreita quando se
elimina a principal, mas não só perdia demasiado tempo a pensar em algo para
postar como me julgava particularmente ridículo por desejar tanto feedback
de meros conhecidos. Uma espécie de ressaca duradoura, uma sensação de maior aperto existencial
e comunicativo decorrente desse corte, mas se for sincero comigo mesmo não
estava ou estou a perder nada senão ilusão de conexão… Envelhecendo, foi-se acentuando
semelhante vontade de reduzir a minha vida ao essencial. As listas de filmes,
videojogos, livros por experienciar cada vez mais curtas… A minha prioridade em
fazê-lo também sem cativar consoante cativava, e, todavia, sempre tudo demasiado
grande de qualquer maneira.
Tento escrever,
pôr tudo o que fui colocando de lado durante uma década neste texto. Aqui
dentro, numa caixa, arrumado. Intimidade supersónica capturada. Escrever para me lembrar que isto aconteceu e,
ok, seguir em frente, mas nada feito. Poder escrever sem ser o joguete de uma
eminência qualquer uma miragem; poder escrever tornando-me eminência com
joguetes uma hipótese só que ainda mais repugnante; um percurso inteiro burlado e
respectivo afunilamento prático atirado para o lixo; a ideia de meritocracia
uma farsa não porque não há uma tal igualdade de partida, mas porque em vez de
ganhares condições técnicas para praticar x, importa tornares-te nos direitos
humanitários de um heróico gatekeeper. Um daqueles sábios pronto a vestir cisões fantásticas, lembrar e emendar que uma tal igualdade de resultados seria ditatorial - até enxegares que a dita cuja de partida lhe serve/serviria tão perfeito o branqueado paradoxo de branquear todo o processo (re)produtivo em legitimação da desigualdade resultante. Adiante... Planos meus? Simples planos meus? Ter um espaço fixo, um gato, um cão. Talvez… irrealístico até o mais simples... e, em todo o caso, estar vivo
só para isso? Aos 30, um balanço negativo de estar vivo: dói mais do que não
dói, dura mais se for dor. Bolas, e ainda a decadência física a lembrar-te dela
pela boca de um joelho. Contigo para sempre, cada vez mais próximos <3.
Eu tento
escrever e as palavras nunca chegam, nem aliviam como quando tinha 16 anos. Estes
posts íntimos enchiam autênticos balões de oxigénio para me aguentar mais
uns meses e necessitar de voltar a escrever. 2019, 2020, ∞.A ansiedade de e-mails ao pequeno-almoço, tentar adormecer e acordar nervoso em sobressalto, mil mentiras nobres na puta da cara. Agora só queria terminar o texto sem voltar aqui, à noite no bairro
nenhum, não consigo. Afinal não. O meu humor iôiô de adulto – uma norma de exasperação com rarefeitos
instantes de radiância. Sozinho à noite no meio da estrada de bairro nenhum. Assente na Terra, baixo a visão das estrelas e nuvens para o que vem à minha frente na aporia tacteável. Vêm-me reminiscências de típicos adultos a fazerem alguém sentir-se
especial em criança, ugh. Apagarem-te a revolta, domesticarem-te, amedrontarem-te com esperança. Em vez de resgatar os muitos fogachos pueris iridescentes, avassala-me de repente a
memória sombria de momentos de tédio infantil durante demasiado longas férias
de Verão. As portadas fechadas dentro de casa por causa do calor, o cheiro a velhos móveis de madeira, uma cor parda de
enclausuramento no ar; ser um mero sidekick de adultos; algum adulto já foi criança nesta casa de avós! Tudo repetido,
gasto, inútil, a minha cabeça estragada logo aos 5 anos de idade. Abano a cabeça e consigo - do mal, o menos - sair
desse mau ambiente da minha pré-histórica vida de dinossauro. Sem sequer ver
tal holograma na estrada, vem-me a conjectura monstruosa de velho apodrecido num lar se
tornar tudo um hoje. Reviver mortes, humilhações, uma rejeição amorosa,
bullying na escola com a intensidade da primeira vez. Tudo o que sempre quis de
volta a casa! Vou saltando de horror em horror mentais e a certa altura desisto,
caio de joelhos inconsoláveis no bairro nenhum. Fecho os olhos por uns segundos, a coisa pára.
Reabro-os a flertar com ideias anti-natalistas: apareceres aqui sem escolha e
nem sequer poderes escolher o fim enquanto antecipação...
Mas ainda mais
um outro, um pensamento de corrida. Este voltado para o passado, para o
presente, para o futuro. Sinto os lábios, as maçãs, os maxilares trémulos de
raiva enojada por todas as vezes na história em que a boa educação de não
chamar nomes aos outros serve para etiquetar o estilo bom e belo de um “educador”
por isso soberano e possuidor. Pois apontar um “cabrão explorador” constitui um gravíssimo
atentado à honra digno de gente rude e taberneira; ser um manipulador sádico e
asséptico que fode insidiosamente alguém com o seu poder (um cabrão explorador!) ainda é naquela…
E depois olho
para o lado à noite no bairro nenhum, para o passeio donde eu escapara escarro informe, e vejo a invisibilidade de um Senhor
Professor Doutor em loop. Come-te, cospe-te beata no chão e arrasta.
Esfrega a sola com a boca dos outros e continua em frente como se nada fosse. Até
que passa a estafeta a um homólogo que. Come-te, cospe e… E é assim que as
instituições mudam o mundo. Do lado oposto da estrada onde está o Senhor Professor Doutor, lá está bem invisível uma diversa equipa
de servos da gleba que acreditam em deus no intermédio a que beijam os pés. Só apupam um porque aplaudem outro... homólogo com a estafeta. De maneira que todos aplaudem o lancil do passeio e querem,
querem, querem! Ser incluídos!
O invisível e a
dúvida, em detrimento de um querer ir além, transformados no produto acabado de manuais
de instruções, verdades feitas contrárias ao brotar imanente e individual de
uma crença. Capitalizar para obedecer, esperança se se obedecer, de escarro se vai ao longe. Se deus quiser, volta-se da terra para a Terra para o flutuar acima da Terra pela juventude sugada de alguém ninguém. Amadurecer. E porque o
bairro nocturno nenhum se situa numa democracia madura, a equipa, essa
diversa identidade colectiva não atomizável, a saber dizer muito bem por vozes
representativas que, conquanto não seja a sua escolha, sabe respeitar o deus do outro, porque o que importa mesmo
é que seja um deus. #Igualdade. E porquanto numa sociedade do conhecimento, a
ciência a simular que especula com toda a sua predeterminação estrutural de uma
elite, uma hierarquia, um corpo iluminado de decisores como sempiterna resposta
antecipada.
Ainda de joelhos inconsoláveis, olho para um
outro lado da estrada - nem esquerda nem direita (É PORQUE É DE DIREITA!) - depois de viver milénios da mesma merda a ver o mesmo
loop do Senhor Professor Doutor a ser visto pela equipa de servos da gleba; estou bem decrépito, idoso, até a
dentadura já tem danos. A terra. Olha! Olha, ali não vai deus morto! Deus morto enquanto
qualquer tipo hipotético de “eu” único e irrepetível viveu feliz para sempre
enquanto cargo, código, lei, instituição, estátua, sob a forma de desigualdade
e exploração justificadas entre seres humanos. Olho de volta, e em relação,
para o loop do Senhor Professor Doutor. Pois. Por isto. Ali! Na via pública!
Ali vão “todas as maneiras de dizer que não sou eu…”, essa fábrica
anticapitalista de distribuir um kitgourmet de seres humanos enquanto único
deus realmente existente. A criação do/a/e super-homem/mulher/enebê.