Um Singular Autómato Colectivo
Discorrer sobre a mediação digital será
sempre reflectir sobre uma dualidade yin-yang. Creio que o lado sombrio
predomina quando consideramos as relações humanas como mais que um meio
para um fim ou uma mera ferramenta utilitária. Essa sombra alonga-se à
medida que perdemos o controlo e distancia-nos de nós próprios.
Com a intensificação decursiva desde há
vinte anos para cá, corremos o risco de nos metamorfosearmos no apêndice
que transportamos, de adoptar o papel de objecto. O sujeito é o
dispositivo que encarna a nossa ausência.
Nesse contexto há que ter em conta um
conceito de literacia digital que peca por se limitar ao domínio da
linguagem informática. O lapso reside no desvalorizar da consciência.
Por conseguinte, usamos muitas vezes o universo virtual como um
mecanismo de escapismo, de obstrução dos sentidos, visando desligar o
interruptor crítico do espírito. Num mundo moderno acelerado pela
tecnologia, a visão turva e a atitude de reflexo é fugir a um exacerbado
temor da solidão. Assim, cada um ludibria a fachada do "eu" face a esse
tormento. Na verdade, estamos somente a fomentar o seu âmago. Não só o
medo é procrastinado, mas também uma conduta activa e de manejo das
rédeas da vida perante questões maiores. Evitar o elefante no quarto é
uma forma alternativa de carpe diem e evadimo-nos tanto diante do
presente como do futuro.
Em oposição ao que apregoam, as redes
sociais online, por exemplo, desconectam indivíduos. Plataformas como o
Facebook fabricam uma determinada representação de uma pessoa e, como
ente único, esta é coagida a adaptar-se. Contribuem também para uma
progressiva banalização e deturpação do termo “amizade”, de tal modo que
é precisamente o espaço cibernético quem mais se aproxima da sua
acepção fidedigna: por lhe concedermos o título de prioridade, pela
permanência ao longo do tempo e pela não dependência de um contexto
semelhante para sobreviver (devido à sua ubiquidade). Se permitirmos que
os média digitais regulem a nossa teia de contactos, se forem eles o souvenir da existência de pessoa x, o que seremos senão um
espelho partido?
Daí irrompem duas alienações de aparência
paradoxal: a ilusória das excepções que recusam a subjugação por
teclados e uma outra, real, que afecta massivamente a sociedade e se
disfarça pelo facto de ser partilhada por multidões. Na mesma senda de
concebermos necessidades que não o são através da mecanização, é comum
os primeiros acreditarem que a sua minoria é sinónimo de estarem errados
e, então, resvalam num avassalador buraco negro. No fim, ninguém é
ninguém e essa insanidade encara-se com normalidade.
As relações à distância não devem tomar o
trono das presenciais. Tal será entrar numa espiral de erros
comunicativos e cair no poço superficial da despersonalização. O tacto,
os gestos, a permuta de palavras e a troca de olhares sem paredes são
sustentáculos a que tendemos a renunciar no ponto final da infância. É
da conectividade mental motivada pelo acto físico que se desenvolve a
qualidade etérea das ligações interpessoais.
Claro, a era digital, inclusive no
íntimo, não é um vilão absoluto. Somos nós a escrever o guião! Cabe à
humanidade despertar, aprender a retorquir “não” à pressão social,
resistir aos (enérgicos, porém breves) sintomas de privação e restringir
o carácter anestesiante da tecnologia. Ela possui o potencial imenso de
divulgar, integrar e até criar novas práticas artísticas. Pode ser
arte! Inquietar e expandir horizontes! Originar introspecção e
autoconhecimento! Um aperfeiçoamento individual como linha de partida
para uma melhoria global cuja amplificação estará, em parte, a cargo
dos novos média.
Lâmpada: é o pólo positivo do mal que
leva à génese de uma antagonista ideia de bem. Se queremos voar mais
alto, apenas temos de cavar mais fundo!