Análise Do Espectáculo De 25 De Setembro De 2014
TAGV - Coimbra
Produção: TNDM, Teatro da Garagem | Encenação: Carlos J. Pessoa | Actores: João Marques, Maria João Vicente, Maria Leite, Miguel Mendes, Nuno Nolasco, Nuno Pinheiro | Cenografia: Sérgio Loureiro | Dramaturgia: Maria João Vicente | Figurinos: Sérgio Loureiro | Música: Daniel Cervantes | Texto: Carlos J. Pessoa
Uma porta impregnada num portão e envolvida por um muro rectangular de pedra: a isso se reduziu o cenário realista e minimalista, porém caleidoscópico de Festas De Garagem. O palco à italiana foi recortado como uma mera recta enquadrada num frontispício logo atrás, criando um clima de intimidade com os espectadores. O eco decorrente de algumas falas (sobretudo quando ligado a um cromatismo azulado) evoca uma ideia de isolamento gélido na infinitude do exterior e estorva uma eventual sensação de claustrofobia. A iluminação ténue, proveniente de candeeiros no muro, aponta para um período nocturno. A luz vermelha na abertura transmite a ambiência libidinosa e hedónica de um qualquer red-light district.
Dado que o espectáculo se
iniciou às 21h e 30m e que, dramaticamente, jamais se afastou desse cenário e
parte do dia, é sugerida uma interpenetração do tempo representado e do tempo
da representação (90 minutos). Essa fusão resulta numa percepção de tempo real
e consequente verosimilhança. É um factor que pesa a favor da empatia, mas não em
absoluto, dado que o autor/encenador Carlos J. Pessoa jogou num registo
brechtiano de “quente-frio”, quebrando por diversas vezes o pacto de ilusão.
A peça começou em silêncio, num quase stillness corporal da personagem
Virgínia Magrinha - a porteira - que contrastou com o carácter verborreico e
histriónico que cedo se impôs, perdurando por toda o espectáculo. Sentada numa
cadeira (adereço solista em palco) e a fumar, Virgínia depara-se com a chegada
do seu sócio Victor Madeira e um cómico “a falar é que a gente não se entende”
desde logo emerge, em concomitância com uma iluminação amarelada (a mais comum
ao longo da peça).
Do outro lado da porta, há a
promessa de uma festa de garagem e as personagens, desfasadas, autênticos
“adultos adolescentes” vão surgindo. Pretendem entrar, perante a recusa
autoritária de Virgínia (e da sua mímica petulante) - passível de analogias com
o Anjo do Auto Da Barca Do Inferno.
Dessa porta que abre e fecha repetitivamente, emana um vento forte, um ruído
industrial, volumoso e sinistro reminiscente do universo cinematográfico de Eraserhead (David Lynch).
Porta - noção de trânsito
entre dois espaços - que é mais protagonista que qualquer uma das personagens.
Assume-se como heterotopia, aludindo a outras obras, tempos, lugares e dimensões.
É a Alegoria Da Caverna de Platão -
pelas sombras corporais no muro de pedra e pelo anseio de entrada num outro
mundo -, mas é também a tentação do pecado original no Éden ou a abertura da
Caixa de Pandora - espelhadas na projecção e ampliação em vídeo (mecanismo
“frio”, de distanciamento crítico, por quebrar a quarta parede) dos rostos
agónicos das personagens quando, por fim, entram e no tom satírico-pessimista
da peça, que todavia tem flashes de
esperança. Remete ainda para o absurdo, expectativa e circularidade de À Espera De Godot (Beckett) através do
mencionado persistente “abre e fecha”, só interrompido perto da conclusão. Transparece
na porta uma dualidade entre promessa de paraíso e temor do desconhecido (por
intermédio de constantes negas da porteira e pelo som e corrente lúgubres).
Mais que tudo, metaforiza o “rectângulo
Portugal” e uma crise inerente que transcende os cifrões - sub-partitura
cultural que os actores partilham. As personagens são os cidadãos que habitam e
não habitam um país igualmente excluído e resignado: um "não-lugar" (Marc Augé). Estão nele
numa ausência interior (que se reflecte no exterior), num adolescer
procrastinado e numa inércia ruminante. Daí que quase todas sejam
expressionistas, “inchadas”, caricaturais.
Virgínia Magrinha é uma
artista falhada (proveniente de mais um reality
show), desejosa de fama, cujo anacronismo está patente no vestuário de disco-star. Victor Madeira é um
carpinteiro oportunista, brejeiro e de géstica hiperactiva que vive de expedientes
(o seu fato-macaco ironiza o pouco que faz e a sua desonestidade). Zica Vaca
Gorda é um arquitecto obcecado com Eusébio (elogia-o ao ponto de se tornar
crítica; simboliza o apego doentio ao futebol, um vazio intelectual a que os
mais escolarizados não escapam e tentam ocultar na fachada de um smoking, por exemplo).
Dux Wellington é um praxista orgulhoso das suas mais de duzentas matrículas e
do seu alcoolismo (ridicularização de uma memória comunitária, dos
universitários que sacralizam e se reduzem a convenções ocas; torna-se
sobejamente patético pelo facto de o seu nome se reportar às guerras liberais).
Todos eles apresentam traços físicos originários de distanciamento - como a
gordura excessiva, a comprida peruca e o bigode (maquilhagem) declaradamente
falso de Zica. Só o adolescente João Benfeitinho não é fisicamente grotesco,
funcionando como pêndulo que torna todos os outros mais credíveis. Na mesma
senda, num plano mental, surge Maria Posfácio, com uma entoação eloquente, firme
e segura, sendo a única fonte de lucidez e consciencialização directa
(materializada na tocha que transporta; o próprio nome, em concordância com a
sua entrada tardia, direcciona para o termo “explicação final”). No entanto, a
sua face pintada de negro e figurino de igual cor assemelham-na à figura da
morte, sugerindo que o espírito crítico pereceu ou está, no mínimo,
entorpecido. Estas últimas são duas personagens de equilíbrio, que reforçam o
pendor sério, o tormento vital de uma peça tragicómica em que o humor é mais
explícito.
A textualidade
contemporânea, de crítica social e com paralelos ao popular teatro de revista está
vincada numa tensão visibilidade/invisibilidade na representação. Os corpos em
palco entram e saem do seu papel (por vezes de forma impertinente), declarando
um enorme à-vontade com o código actor/personagem - deambulam entre um pacto de
ilusão e uma irrisão do mesmo. Essa quebra da quarta parede/metateatralidade é
concretizada quando Dux Wellington fala sobre “definir os contornos da sua
personagem”, quando Zica Vaca Gorda afirma “entrei cedo demais” e se define
como uma personagem prematura (correspondeu a um dos momentos mais risíveis
para os espectadores), quando Maria Posfácio dirige ao público um “eu aqui, vós
aí” ou quando a porteira monologa para a plateia “fazem de conta que não é nada
convosco!”.
O texto tem um carácter
acumulativo, prolixo e ruidoso, numa corrente de consciência sintomática dos
grandes centros urbanos e da era digital; é “coisificado” pela forma não
naturalista como é representado. Faz e desfaz: não reconhecemos, por isso,
continuidade nas acções. O ritmo dos cinco actos é acelerado, indefinido,
pontuado com interlúdios de música electrónica instrumental que começam e
terminam de modo abrupto. A esses momentos associam-se coreografias velozes, espalhafatosas,
contemporâneas, livres de convenções ou de gestos miméticos e reveladoras de
físicos deveras plásticos e resistentes. No campo da iluminação, o vermelho de
alterne impõe-se durante os referidos interlúdios.
Os diálogos são exprimidos
com paroxismo, passando por temas tão diversos como a felicidade, a emancipação
feminina, guerras passadas, o aumento da idade da reforma até à velhice e
outros de trivialidade plena - sucedem-se e mesclam-se esquizofrenicamente; as
palavras saem como as balas de uma metralhadora. Dada a seriedade de alguns dos
temas, é sintomático que inclusive Dux Wellington e Victor Madeira, as
personagens mais boçais (o primeiro chega a baixar as calças), conjuguem ao
jocoso um uso elaborado e diversificado da língua portuguesa, repleto de jogos
de linguagem (mas também de rimas forçadas). Pela natureza farsesca do texto,
muitos dos pontos de vista são amorais e disparatados. Uma frase como “falamos
um bocadinho demais” explana toda a auto-consciência do autor e das
personagens.
No expoente máximo da
recepção cómica do público, esteve o leitmotiv/refrão “cocó e xixi, eles são
dois amigos no fundo da sanita”. Momentos escatológicos que, em detrimento do
escândalo, procuram mundanizar o texto. Além disso, a peça serve-se da música
para reanimar a audiência de perífrases textuais - algo em que teve êxito neste
espectáculo. Os criadores reconhecem-nas, visto que pospõem ao adormecimento
por tédio de Victor Madeira um episódio musical.
Noutro espectro, o momento
ecuménico perto do fim em que todas as personagens se juntam e cantam “oh oh
oh” numa comoção conjunta (sobre uma composição instrumental de atmosfera
inspiradora) corresponde a uma das ocorrências de maior poder empático. É uma
cena etérea e sonhadora, substancializada no lançamento de confetti em palco, e que condensa a essência de Festas De Garagem (algo oculta pelo
primeiro plano concedido à feição cómica): a angústia existencial e a busca de
uma identidade para a poder atenuar. Cada personagem expressa um premente e
omnipotente “sentir tudo de todas as maneiras”, um caos interno tão promissor
como desolador. A adolescência é (também ela) abordada enquanto aproximação a
um "não-lugar", um período formativo e de pluralidade: um processo. Por ser de
identificação universal, esse instante é de elevado potencial catártico.
A porta é, nessa perspectiva
ontológica, cósmica como um buraco negro; a expectativa de um desconhecido evento
de divertimento nocturno “suga” toda a atenção das personagens (é lhes um
hipotético deus ex machina). Há um
vazio (irónico) a preencher-lhes a mente. No clímax do “oh oh oh” colectivo,
encontram esse ponto de conexão - obliteram as suas divergências e a solidão em
conjunto por via de um objectivo em comum - para a intersubjectividade, tal
como aí se sela a unidade conceptual de uma peça não teleológica, assente em
quadros de sequência narrativa residual. Aos adolescentes e aos
jovens adultos (o público alvo de Festas De Garagem) lança-se um repto de indagação, apela-se ao seu papel de alguma
crença numa população tomada pela descrença.
O espectáculo findou com um
êxtase sensorial de luzes estroboscópicas acopladas com uma intensa paisagem
sonora electrónica. Em simultâneo, as personagens abandonam definitivamente o seu
papel, despindo-se até ficarem de roupa interior. Uma seminudez que acarreta
uma ampliação do figurino, pois, numa lógica cultural e social, os corpos mais
nus são os mais vestidos. À pulsão voyeurística de os ver opõe-se a dificuldade
de uma perceptibilidade intermitente, num epílogo de manifestação da
materialidade espectacular. É uma última convocação do senso crítico através do
estranhamento.