quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Festas De Garagem - Horror Ao Vazio

Análise Do Espectáculo De 25 De Setembro De 2014

TAGV - Coimbra




















Produção: TNDM, Teatro da Garagem | Encenação: Carlos J. Pessoa | Actores: João Marques, Maria João Vicente, Maria Leite, Miguel Mendes, Nuno Nolasco, Nuno Pinheiro | Cenografia: Sérgio Loureiro | Dramaturgia: Maria João Vicente | Figurinos: Sérgio Loureiro | Música: Daniel Cervantes | Texto: Carlos J. Pessoa

Uma porta impregnada num portão e envolvida por um muro rectangular de pedra: a isso se reduziu o cenário realista e minimalista, porém caleidoscópico de Festas De Garagem. O palco à italiana foi recortado como uma mera recta enquadrada num frontispício logo atrás, criando um clima de intimidade com os espectadores. O eco decorrente de algumas falas (sobretudo quando ligado a um cromatismo azulado) evoca uma ideia de isolamento gélido na infinitude do exterior e estorva uma eventual sensação de claustrofobia. A iluminação ténue, proveniente de candeeiros no muro, aponta para um período nocturno. A luz vermelha na abertura transmite a ambiência libidinosa e hedónica de um qualquer red-light district.

Dado que o espectáculo se iniciou às 21h e 30m e que, dramaticamente, jamais se afastou desse cenário e parte do dia, é sugerida uma interpenetração do tempo representado e do tempo da representação (90 minutos). Essa fusão resulta numa percepção de tempo real e consequente verosimilhança. É um factor que pesa a favor da empatia, mas não em absoluto, dado que o autor/encenador Carlos J. Pessoa jogou num registo brechtiano de “quente-frio”, quebrando por diversas vezes o pacto de ilusão.

A peça começou em silêncio, num quase stillness corporal da personagem Virgínia Magrinha - a porteira - que contrastou com o carácter verborreico e histriónico que cedo se impôs, perdurando por toda o espectáculo. Sentada numa cadeira (adereço solista em palco) e a fumar, Virgínia depara-se com a chegada do seu sócio Victor Madeira e um cómico “a falar é que a gente não se entende” desde logo emerge, em concomitância com uma iluminação amarelada (a mais comum ao longo da peça). 

Do outro lado da porta, há a promessa de uma festa de garagem e as personagens, desfasadas, autênticos “adultos adolescentes” vão surgindo. Pretendem entrar, perante a recusa autoritária de Virgínia (e da sua mímica petulante) - passível de analogias com o Anjo do Auto Da Barca Do Inferno. Dessa porta que abre e fecha repetitivamente, emana um vento forte, um ruído industrial, volumoso e sinistro reminiscente do universo cinematográfico de Eraserhead (David Lynch). 

Porta - noção de trânsito entre dois espaços - que é mais protagonista que qualquer uma das personagens. Assume-se como heterotopia, aludindo a outras obras, tempos, lugares e dimensões. É a Alegoria Da Caverna de Platão - pelas sombras corporais no muro de pedra e pelo anseio de entrada num outro mundo -, mas é também a tentação do pecado original no Éden ou a abertura da Caixa de Pandora - espelhadas na projecção e ampliação em vídeo (mecanismo “frio”, de distanciamento crítico, por quebrar a quarta parede) dos rostos agónicos das personagens quando, por fim, entram e no tom satírico-pessimista da peça, que todavia tem flashes de esperança. Remete ainda para o absurdo, expectativa e circularidade de À Espera De Godot (Beckett) através do mencionado persistente “abre e fecha”, só interrompido perto da conclusão. Transparece na porta uma dualidade entre promessa de paraíso e temor do desconhecido (por intermédio de constantes negas da porteira e pelo som e corrente lúgubres).

Mais que tudo, metaforiza o “rectângulo Portugal” e uma crise inerente que transcende os cifrões - sub-partitura cultural que os actores partilham. As personagens são os cidadãos que habitam e não habitam um país igualmente excluído e resignado: um "não-lugar" (Marc Augé). Estão nele numa ausência interior (que se reflecte no exterior), num adolescer procrastinado e numa inércia ruminante. Daí que quase todas sejam expressionistas, “inchadas”, caricaturais. 

Virgínia Magrinha é uma artista falhada (proveniente de mais um reality show), desejosa de fama, cujo anacronismo está patente no vestuário de disco-star. Victor Madeira é um carpinteiro oportunista, brejeiro e de géstica hiperactiva que vive de expedientes (o seu fato-macaco ironiza o pouco que faz e a sua desonestidade). Zica Vaca Gorda é um arquitecto obcecado com Eusébio (elogia-o ao ponto de se tornar crítica; simboliza o apego doentio ao futebol, um vazio intelectual a que os mais escolarizados não escapam e tentam ocultar na fachada de um smoking, por exemplo). Dux Wellington é um praxista orgulhoso das suas mais de duzentas matrículas e do seu alcoolismo (ridicularização de uma memória comunitária, dos universitários que sacralizam e se reduzem a convenções ocas; torna-se sobejamente patético pelo facto de o seu nome se reportar às guerras liberais). 

Todos eles apresentam traços físicos originários de distanciamento - como a gordura excessiva, a comprida peruca e o bigode (maquilhagem) declaradamente falso de Zica. Só o adolescente João Benfeitinho não é fisicamente grotesco, funcionando como pêndulo que torna todos os outros mais credíveis. Na mesma senda, num plano mental, surge Maria Posfácio, com uma entoação eloquente, firme e segura, sendo a única fonte de lucidez e consciencialização directa (materializada na tocha que transporta; o próprio nome, em concordância com a sua entrada tardia, direcciona para o termo “explicação final”). No entanto, a sua face pintada de negro e figurino de igual cor assemelham-na à figura da morte, sugerindo que o espírito crítico pereceu ou está, no mínimo, entorpecido. Estas últimas são duas personagens de equilíbrio, que reforçam o pendor sério, o tormento vital de uma peça tragicómica em que o humor é mais explícito.  

A textualidade contemporânea, de crítica social e com paralelos ao popular teatro de revista está vincada numa tensão visibilidade/invisibilidade na representação. Os corpos em palco entram e saem do seu papel (por vezes de forma impertinente), declarando um enorme à-vontade com o código actor/personagem - deambulam entre um pacto de ilusão e uma irrisão do mesmo. Essa quebra da quarta parede/metateatralidade é concretizada quando Dux Wellington fala sobre “definir os contornos da sua personagem”, quando Zica Vaca Gorda afirma “entrei cedo demais” e se define como uma personagem prematura (correspondeu a um dos momentos mais risíveis para os espectadores), quando Maria Posfácio dirige ao público um “eu aqui, vós aí” ou quando a porteira monologa para a plateia “fazem de conta que não é nada convosco!”.

O texto tem um carácter acumulativo, prolixo e ruidoso, numa corrente de consciência sintomática dos grandes centros urbanos e da era digital; é “coisificado” pela forma não naturalista como é representado. Faz e desfaz: não reconhecemos, por isso, continuidade nas acções. O ritmo dos cinco actos é acelerado, indefinido, pontuado com interlúdios de música electrónica instrumental que começam e terminam de modo abrupto. A esses momentos associam-se coreografias velozes, espalhafatosas, contemporâneas, livres de convenções ou de gestos miméticos e reveladoras de físicos deveras plásticos e resistentes. No campo da iluminação, o vermelho de alterne impõe-se durante os referidos interlúdios.

Os diálogos são exprimidos com paroxismo, passando por temas tão diversos como a felicidade, a emancipação feminina, guerras passadas, o aumento da idade da reforma até à velhice e outros de trivialidade plena - sucedem-se e mesclam-se esquizofrenicamente; as palavras saem como as balas de uma metralhadora. Dada a seriedade de alguns dos temas, é sintomático que inclusive Dux Wellington e Victor Madeira, as personagens mais boçais (o primeiro chega a baixar as calças), conjuguem ao jocoso um uso elaborado e diversificado da língua portuguesa, repleto de jogos de linguagem (mas também de rimas forçadas). Pela natureza farsesca do texto, muitos dos pontos de vista são amorais e disparatados. Uma frase como “falamos um bocadinho demais” explana toda a auto-consciência do autor e das personagens.

No expoente máximo da recepção cómica do público, esteve o leitmotiv/refrão “cocó e xixi, eles são dois amigos no fundo da sanita”. Momentos escatológicos que, em detrimento do escândalo, procuram mundanizar o texto. Além disso, a peça serve-se da música para reanimar a audiência de perífrases textuais - algo em que teve êxito neste espectáculo. Os criadores reconhecem-nas, visto que pospõem ao adormecimento por tédio de Victor Madeira um episódio musical.

Noutro espectro, o momento ecuménico perto do fim em que todas as personagens se juntam e cantam “oh oh oh” numa comoção conjunta (sobre uma composição instrumental de atmosfera inspiradora) corresponde a uma das ocorrências de maior poder empático. É uma cena etérea e sonhadora, substancializada no lançamento de confetti em palco, e que condensa a essência de Festas De Garagem (algo oculta pelo primeiro plano concedido à feição cómica): a angústia existencial e a busca de uma identidade para a poder atenuar. Cada personagem expressa um premente e omnipotente “sentir tudo de todas as maneiras”, um caos interno tão promissor como desolador. A adolescência é (também ela) abordada enquanto aproximação a um "não-lugar", um período formativo e de pluralidade: um processo. Por ser de identificação universal, esse instante é de elevado potencial catártico. 

A porta é, nessa perspectiva ontológica, cósmica como um buraco negro; a expectativa de um desconhecido evento de divertimento nocturno “suga” toda a atenção das personagens (é lhes um hipotético deus ex machina). Há um vazio (irónico) a preencher-lhes a mente. No clímax do “oh oh oh” colectivo, encontram esse ponto de conexão - obliteram as suas divergências e a solidão em conjunto por via de um objectivo em comum - para a intersubjectividade, tal como aí se sela a unidade conceptual de uma peça não teleológica, assente em quadros de sequência narrativa residual. Aos adolescentes e aos jovens adultos (o público alvo de Festas De Garagem) lança-se um repto de indagação, apela-se ao seu papel de alguma crença numa população tomada pela descrença. 

O espectáculo findou com um êxtase sensorial de luzes estroboscópicas acopladas com uma intensa paisagem sonora electrónica. Em simultâneo, as personagens abandonam definitivamente o seu papel, despindo-se até ficarem de roupa interior. Uma seminudez que acarreta uma ampliação do figurino, pois, numa lógica cultural e social, os corpos mais nus são os mais vestidos. À pulsão voyeurística de os ver opõe-se a dificuldade de uma perceptibilidade intermitente, num epílogo de manifestação da materialidade espectacular. É uma última convocação do senso crítico através do estranhamento.