quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Como Um Estranho A Olhar Para Mim Sem Me Ver #2

Nalguns dias preciso desesperado de oxigénio. Sinto-me tão feito, rarefeito, desfeito. Honestamente mal tenho palavras. E não prestam. Nunca chegam e nunca acabam a totalizar este monstro. Detesto como isto sabe no corpo: o velho nó na garganta, o peito a aproximar-se dela em fogachos de calor e ardor, o gosto seco na boca. Alguma coisa prestes a rebentar, mas nunca rebenta. A sensação de impotência, de impossibilidade, de inexorabilidade. Como quando tinha 9 anos e percebi mas percebi a sério que um dia vamos todos morrer: perder o apetite, perder a ideia que os meus pais eram super-heróis, perder o conto de fadas que o que acontece a toda a gente não te vai acontecer a ti também. Estar no banco de trás do carro de regresso a casa após compras e parecer que comprei todo o escuro da vida para todo o sempre. Absoluto niilismo. Como se fosse eu o céu nocturno que via daquela vidraça. Um escarro disforme e dissoluto e abaixo os dentes aguçados da Serra da Estrela, com raízes vindas do céu-breu. O carro inferior mil metros e meio, plano numa recta rumo a lado nenhum. Toda a gente vai lá viver. Até quem lá vive antes de lá viver. 

Eventualmente, adaptas-te, sobrevives. "Ainda és tão novo", introjectas bem. Aprendes a viver vicário em séries, filmes e videojogos de conforto. Entre bullying escolar e esquemas nojentos por popularidade de clones do que um adolescente deve ser e fazer, aprendes. Entre estudar para os testes, absorver a lógica do teste e do avaliado e reconhecer (o medo) da figura de autoridade "professor", sonhas. Entre efectivamente aprenderes sem perceber que estás efectivamente e sobretudo a ser domesticado para um dia servires e produzires a grandeza de alguém... Nem sonhas. Que nada do que saibas fazer importa enquanto contributo e expressão comunitária directa. Boa sorte em encontrar a "qualidade" e a "subsistência" fora da correspondência à intermediação institucional, vantajosa e glutónica... de um patrão, de um director, de um presidente, de um coordenador de curso e demais pestes. Um colectivo retórico. Porque melhor mesmo que "igualdade" é a ficção representativa de um "presidente da comissão para a igualdade social". E se parecer mal, anacrónico o suficiente, muda-lhe o género ou chama-lhe só mesmo "comissão para a igualdade social" dos trinta oligarcas sem líder individual. Vão lutar. Lutar por milénios fora por mais milénios da mesma merda. Reduzirem-te a isso: merda. Merda fértil taxidermia só casino dos poucos. Que existem.

Tens 16 e, verdade seja dita, não és flor que se cheire. Mas está a tua frente. Está à tua frente, como o idiota do director da tua escola secundária. Com os seus grandes discursos sobre os melhores resultados nos exames nacionais no concelho ao mesmo tempo que abafa assaltos e tentativas de assalto, violência, condições miseráveis nos balneários ou equipamentos de educação física. Só tens nojo. Só queres distância. Aquilo não é vida. Vês um pouco o mesmo filme todos os dias todas as noites todos os telejornais todos os partidos políticos. Salvar a face. Porque os pais protegem, podes esquecer; porque a escola entorpece, esqueces. Queres-te safar. Pensar em ti, pensar no futuro. Percebes essa parte, não computas as tácticas, a instrumentalização, pisar quem der para pisar até fundares as escadas privilegiadas da tua própria ascensão. Prontas a inaugurar com a fita vermelha do sangue dos outros. Corta. Corta bem. E anota bem. Mais que tudo, sonhas. Sonhas durante o dia, no duplo ideal do que podia estar a acontecer. A solidão que sentes, as raparigas de que gostas invisivelmente e os amigos que não tens. Vais vê-los e ouvi-los em todos os fones e filmes de todos os metaversos possíveis. No intervalo das aulas, na vidraça do autocarro, no teu quarto-encubadora. É. Não sou menos um clone mediático adolescente dum beijo na chuva, uma cabana na árvore, contos de terror numa fogueira circular dentro do Verão e da floresta. Brilha tudo tão claro! "Vês demasiados filmes!" Vi demasiados filmes. Mas não viste o maior deles todos, uns trastes bem pensantes em trajes a escrever a ficção da realidade diária. Enquanto escreves no diário, os cadernos do rapaz impossível. Aquele Estado ecuménico, das tuas canções preferidas e lá dentro... As tuas pessoas preferidas. Chora fácil chora frágil, a angústia passional de um miúdo numa sexta-feira à noite. No quarto comigo, o cenário é planetário. Cantamos juntos: entre os anéis de Saturno, as memórias bailam com as expectativas defronte. Enfim, sentires-te importante na tua avassaladora diminuição. És de ti mesmo.

Mas olha que não viste mesmo. "Uma Chapada da Realidade", um clássico cinematográfico produzido por privilegiados que te incluem discursivamente entre os privilegiados para denegar a sua agência absorcionista numa estrutura que se confunde com a sua própria pele. Aumentada. Bilhetes à venda nos lugares de trabalho habituais. Já em exibição em gabinetes perto de si.

A pior parte? A pior parte é ver a psiquiatrização da opressão surtir efeito. Quando um monstro te prostra, chantageia, censura e ameaça a tua subsistência e não podes denunciar, ele entra dentro de ti. Introjectas bem. Introjecto bem. Os actos, os estratagemas, os compinchas & compactuantes, tornas-te os comprimidos que ele te pergunta se andas a tomar. À luz do gás pensas, "então ele tem razão", "então eu sou louco". E todas as instituições vão tão adorar dizer: "é a habitual crise de doutoramento a meio do percurso"; "é comum um doutorando ter problemas de saúde mental ao desenvolver a sua tese, face à pressão envolvida na escrita da mesma".

Engole mil "todos passamos por isso", mil "misérias em conjunto"! Excita-te com isso. "Sê humilde nas tuas denúncias perante um mártir sempre impossível do alguém que sofreu mais e a sério". "Sai da tua bolha" (de comeres todos os dias a solidão e incredulidade normalizantes de hierarquias sobre as quais produzimos extraordinários raciocínios abstractos sob a forma de artigos e comunicações académicas cuja existência controlamos oligarquicamente via peer review que pode sentenciar o teu trabalho como não-trabalho). Ousa levantar a cabeça, ripostar e vê percebe todas as instâncias canais institucionais comunicativos como uma extensão de quem detém os meios. Prova desprezo, a sobremesa é silêncio. Processos de auto-avaliação com alunos escolhidos a dedo, branqueamento de assédio sexual, inflação e fraudes nas notas de seminários, usar redes internacionais de endogamia para publicar sem endogamia, mudar de opinião consoante a pessoa que se tem à frente, falsificação de identidade para te tentarem acusar de escrever um texto que não escreveste, perguntarem-te quem gostavas de ter no júri da prova, ser roubado num prémio de mérito importante para quem é esmagado de todos os ângulos, ser proibido de usar um powerpoint enquanto método de apresentação por um "grande defensor da liberdade de métodos"... Já não ter paciência para enumerar tudo. Mas vai chegar o dia. Vai. 

Como eu vou vendo bem, afinal por de trás da enorme sapiência científica em área x. Uma pessoa com a sensibilidade e a capacidade de reflexão social de um troglodita. Uma no meio de doutos doutores trogloditas afins. A ilusão de progresso. Puxa à esquerda, puxa à direita institucionais: qual barra de volume da treta do meu pc, "quanta desigualdade da qual o meu jugo se firma já inquestionável é aceitável"?. E aqui bem na academia, o melhor (para eles) de dois mundos. O prestígio, a reputação, todas essas palavras de merda dignas de uma república monárquica para os definir. Mas sem escrutínio público. Rostos desconhecidos reserva. Inquestionados e bajulados. "Não é só aqui". "É mesmo assim, o conhecimento científico deve ser abstracto, o calunioso e o anedótico não têm lugar na universidade"."É normal, diferentes concepções de verdades entram na contenda pela sua hegemonia discursiva, senda a sua só mais uma". "Não está aberto à pluralidade" monolítica que o subjuga

A pior parte? A pior parte é só escrever isto aos 28 anos. Escrever como quem diz fazer sentido da repulsa institucional que já sentia aos 16. Racionalizar a percepção da injustiça. E o quanto da minha própria sempiterna ansiedade social brota da invenção das "figuras de autoridade" enquanto intimidação. Porque, "parece", não há conhecimento técnico sem o seu direito a ganhar mais e a controlar sempre: a sub-vida dos outros. Mas mas mas, o elitismo nunca foi status quo de nada e, bolas, já estou a ser anti-intelectual. Como o que diz John Rawls: "as desigualdades sociais e económicas devem estar dispostas de modo que ambas são: (a) para o maior benefício dos menos favorecidos, consistente com o princípio de economias justas e (b) atreladas a cargos e posições abertos a todos em condições de justa igualdade de oportunidades". Santa benevolência! Venha providência! Não só beneficiar com a desinteressada superioridade dos outros. Também poder sonhar ser poder! Falta só mesmo: criar o Éden da igualdade de oportunidades para poder legitimar a desigualdade daí decorrente: pela área laboral ou de estudo, pelo mérito do networking, pela nobreza dos grandes estadistas de servir a res publica.

Se uma lei da selva cai na cidade e todos estão perto para ouvir ou ver, será que a lei da selva caiu mesmo? Gostava de ter sabido antes... o bullying escolar, a hipocrisia e os concursos de popularidade adolescente... A inevitável conexão crescente entre as grades da escola e as grades do mundo laboral-institucional. A mesma sensação elevada ao cubo da impotência, impossibilidade e inexorabilidade. Detesto como isto sabe no corpo: o velho nó na garganta, o peito a aproximar-se dela em fogachos de calor e ardor, o gosto seco na boca. Alguma coisa prestes a rebentar, mas nunca rebenta. Como quando aos 9 captei que um dia vamos todos morrer. Agora uma perplexidade embebida de raiva: não tinha de ser assim!; toda a gente vê mas ninguém faz nada. Jogos nojentos de popularidade. A versão passada de clones do que um adolescente deve ser e fazer. Tal e qual um dia uns poucos da minha geração vão estar lá em peso. Não, não há diferença moral entre um "povo" e uma "elite", há correspondência perversa na mera existência de elite. Quando se está na posição em que estou na universidade e quando vejo colegas a calarem-se sistematicamente perante abusos de professores, é fácil ver a reprodução social. Entre a gratidão e a indiferença, passam progressivamente para a categoria da perversidade inerente ao cargo. 

Gostava de ter sido alertado, de ter sido educado para este status quo. Mas, pensando bem, talvez isso significasse a inexistência hegemónica e normalizante do que vivo agora. Não o estaria a viver ou, na pior das hipóteses, teria crescido, junto com muitos outros, com os leucócitos necessários, com a agressividade precisa para deitar abaixo uma lógica institucional que se auto-intitula (LOL) como garante da liberdade e da igualdade. Sem dissonância cognitiva, teria percebido aos 16 que o tal filme supostamente chamado "Uma Chapada da Realidade" se designava afinal "Chocolatinhos da Ideologia". Teria computado a narrativa dos constrangimentos do cenário macroeconómico só aplicada a quem está na merda; a lógica da manifestação ritualizada e amansada por feriados ou dias históricos; a cisão dual entre protesto pacífico e violento como se só existisse segurar um cartaz pela rua vs. agredir alguém e incendiar; a figura jurídica da difamação enquanto protectora de gente poderosa num sistema judicial reprodutor da opressão; o sufrágio universal ora anulado por cadeias de nomeações governativas e listas partidárias ora instrumentalizado para legitimar, por exemplo, a exploração laboral enquanto válida escolha social; a pilha de documentação privada e reuniões à porta fechada por parte de órgãos que se dizem representativos; as possibilidades laborais enquanto algo que um conjunto de gestores superiores permite a quem quer entrar em vez de toda a sociedade se reorganizar para os acomodar, sem porteiros para lá de um necessário período de formação reduzido no tempo; a universidade como aristocracia do século XXI.

Quando a porta é fechada, a sala é de alguém. E ser esse alguém é ser tempo, é ser espaço, é ser o corpo dentro de pessoas como eu, agora. Tenho pontos na boca, mas estou morto por falar. Com nomes e caras, com detalhes, publicamente. Cansei-me para a vida de pedir, pedinchar. Chama-se ser roubado. Acordar todos os dias, experienciar todos os dias com actos, pessoas e estruturas na cabeça, no hálito respiratório metálico e carcerário. Já passaram anos desde que tudo isto rebentou e algo se foi que não vejo como poderá um dia voltar. Detesto sentir-me desimportante para mim mesmo. Sem ser adoecer e ter os órgãos a tornarem-se simulacros da percepção da morte (ou vê-lo acontecer a alguém querido) - como quando tinha 9 anos mas agora com decadência e dor palpáveis -, não há pior. Não há pior e, contudo, tem tudo para piorar quando deixar de ter bolsa e acabar o curso. A pior parte? A pior parte é mesmo ver a psiquiatrização da opressão surtir efeito. Passar a ter nada mais que alguns dias menos maus, como se tivesses uma horrível doença crónica. É isso que são algumas pessoas, uma doença que coloniza uma existência já vexada ao sofrimento físico. 

Eu sou fraco, eu sou frágil, eu sou a fragilidade. Mas como o cão maltratado que a certa altura morde o dono, comecei a ganhar as minhas defesas ao longo do último ano. É demasiado fácil deitar-me ainda mais abaixo, tudo é uma réplica em cadeia de sincronicidade com o trauma que se vai acumulando atrás, mas até a isso acabas por te habituar. Encho-me de angústia geológica. A raiva, a repulsa e o desejo de justiça não são menores nem antitéticos à tristeza, ao vazio e ao abatimento. As coisas más continuam a suceder-se e eu continuo a piorar para de vez em quando melhorar um bocadinho. Nada mais. Às vezes repito a mim mesmo dezenas de vezes que vão pagar por tudo com a devida exposição pública - TODOS ELES. Vão ser expostos vão ser expostos vão ser expostos vão ser expostos! Nem que tenha de me arruinar ainda mais! Vou tanto comer o seu espaço e tempo quanto este impulso adjacente e demolidor pela autodestruição. Às vezes adoro-o doentiamente! Para já, tenho muito trabalho pela frente. E, agora mesmo, mais uns dias particularmente maus e não-produtivos pela frente. A escumalha deles está forte nas veias, sinto-me demasiado assim para estruturar o meu acto de haraquiri. Apenas depois, aí, poderei ter uma réstia de vislumbre de hipótese de talvez não ter este gosto metálico omnipresente no dia-a-dia.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Eu Somos, Eles É

Eu Somos, Eles É

 
Se eu fomentar
Ele vai dilatar
Se eu delatar
Ele vai deletar-me
E ele vai deleitar
Não vou lá jantar
Não vou lá juntar-me
Ninguém sem charme

Se eu não fomentar
Ele também vai dilatar
Mas se eu não delatar
Ele não vai deletar-me
E ele vai deleitar
Eu fui lá jantar
E fui lá juntar-me
Alguém com charme
Não vão detectar-me

Se ele (não) fomentar
Agora vou eu dilatar
Há que saber estar
Até o canapé ter calo
Porque se ele não delatar
Eu não vou deletá-lo
E eu vou deleitar
Ele vem cá jantar
E vou cá juntá-lo
O meu próprio vassalo

Se ninguém fomentar
Alguém vai ao ** dilatá-lo
Mas ninguém vai delatar-me
Um violador com charme
Todos vão deletá-lo
O bebé veio cá jantar
Ninguém se veio a jantá-lo
Todos queriam juntá-lo
À família do trabalho
Onde eu somos, eles é
Cada cargo no seu galho
A falta de pé a deleitar o tripé:

«“Vimo-nos por este meio isentar
Foi ninguém que decidiu cá jantar
E o assédio é um grande flagelo
Fazemos de delatar longe um apelo
Até temos um gabinete a detectá-lo
Pelo telescópio, em forma de falo
Um anti-caralho revestido de halo
Mas não se cospe no prato que dilata
Ninguém em alguém, a casa onde janta
Quem junta a possibilidade de fomentar
Bebés a saber dizer “há que saber estar”».

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Como Um Estranho A Olhar Para Mim Sem Me Ver #1

Parece que o mundo se foi embora e me deixou aqui. Não sei o que me deixa mais vazio, angustiado, até perplexo. Provavelmente teria de começar pela imensa dificuldade de expressão escrita espontânea. Quero e preciso de escrever no preciso momento em que o grafo, mas a minha cabeça só roda à volta da enormidade e da impossibilidade: está tudo, uma roda gigante a acontecer cá dentro e ao tentar encontrar um gancho só me sinto absolutamente dissoluto. Tenho saudades da integridade e da unidade adolescentes e pós-adolescentes. Como me sentia um centro e o meu próprio corpo prolongado em palavras era casa, era lar. Fiável, consistente, confortável. Podia exprimir o mesmo miserabilismo emocional de agora, mas eu era eu, eu era alguém. Tinha um nome, uma história, continuidade. Havia pessoas, sítios, hábitos e pontes entre eles. As chegadas e as partidas eram tão contínuas, próximas que subtis, naturais. Se alguém partia, noventa e nove ficavam. Lentidão e estabilidade não desérticas, não decrépitas. Havia sempre uma cidade maior no horizonte. 

Se em criança me vidrava nos meus bonecos, nos meus desenhos, nos meus livros ilustrados, em desenhos animados e videojogos, aos 13 apaixonava-me por música. blink-182, pop punk e tudo a partir daí. Jimmy Eat World, Foo Fighters, Yellowcard, Motion City Soundtrack, The National...  Letras como espelho, e olá mundo interior. Aos 15 cinema e séries: perfeito sentido. 2009, o verão e o twist do Fight Club, o outono do Donnie Darko e do American Beauty. O Lost In Translation no setembro do começo do meu 12.º ano: aquela alienação, aquele banho de éter urbano e saturado de letreiros electrónicos. Solidão e silêncio, uma conexão fortuita. A televisão e o chão da sala. Dos 5 aos 18 aos 21. O dia na primária em que passei a ter tv por cabo. Canal Panda, Disney Channel. A maior melhor parte da minha vida são memórias mediáticas. Oxigénio e outros universos. 

O meu quarto de crescer, a minha casa dos meus pais. Caria-Belmonte-Covilhã. Sempre isto. A Princesa, o Malaquias, o Tobias, os meus queridos gatos. Ronronar, o pêlo macio em mim, miar para entrar em casa. De manhã, nas tardes livres. O polidesportivo. Sempre o polidesportivo. Caria. Eu e uma bola. Nas noites de verão. Outubro de 2005: União Desportiva de Belmonte. As piadas, os golos e às vezes sentir, que tinha valor. Os colegas de turma, os colegas do futebol. Os testes excelentes e os dezoitos com um ano de merda pelo meio. Eu tinha algo, alguma coisa tinha que ter. Especial. Talento. Protagonista da minha própria vida. Ser importante para alguém. Alguma coisa. Futebol futebol futebol. O recreio na primária, as corridas à volta da escola e as garrafas de iogurte líquido a fazer de bola. O Benfica e os golos do Simão. Resultados no teletexto. Ir à papelaria comprar o jornal. As palhaçadas em casa. Elásticos das calças atados às orelhas, meias nas mãos, calças de fato de treino até ao peito. Esqueci-me das séries. Lost, o verão de 2009 e 2010. "We have to go back", concordo cada vez mais. Six Feet Under para lidar com a morte, Twin Peaks para me embasbacar com o vento do Badalamenti nas árvores, The X-Files para um longuíssimo êxtase criativo diverso que me "trouxe novos mundos ao mundo" sem ser um traste colonizador.

Não consigo ir linear e ainda falta. O dia na primária em que chegou um computador a casa. Quantas tardes a ver o meu irmão jogar. Max Payne, Mafia, The Sims, GTA 3, GTA Vice City, Tzar. Eu a jogar. FIFA 2002, FIFA 2003, Championship Manager 2003/2004. Folhear a MegaScore. Centenas de jogos e cds ripados. Mas mais que tudo, o meu Game Boy Color roxo no fim do meu 1.º ano. Pokémon Pokémon Pokémon. Azul vermelho dourado cristal. Azul o meu primeiro jogo: a Blastoise. O Pidgey a evoluir em casa da minha avó. Aquela estranha paleta de cores esverdeada azul salmão. Vermelho recebido no melhor natal: escrevi uma carta. Família, árvore pai de natal e correr de manhã para lá, as luzes na rua, as publicidades na TV. Deus, se não cresci à frente de ecrãs. Eu cresci com transfusões de sangue dadas pela televisão. O VHS, as cassetes, a colecção da Rua Sésamo. O Batatoon, o Jardim da Celeste. Nery, a Rapariga dos Oceanos, os créditos finais etéreos e às 21:30 era hora de cama mas para dormir. Dormir logo e seguro. Apesar do medo. Fantasmas um tocou-me e as bruxas nas janelas aquele pesadelo em que a minha mãe uma.  

Acordar antes das 7h fim-de-semana e férias, televendas ou transmissões por iniciar. Sem sinal, arco-íris e estática. A Super Nintendo do meu irmão e as festas de aniversário coladas ao Natal. Na garagem cheia de Playmobil. A música do Super Mario World num quadrado pesado de 20 polegadas. Cresci em 8 e 16 bits. E todas estas memórias são um sistema informático de caixa negra. Comigo lá dentro não existo cá fora. Só tenho a minha própria consciência. De ver o mundo lavar esta merda toda. Mas nem vi. E eu detesto como só nos vemos uns aos outros em corpos funcionais. Assina isto, dirige-te ali, boa tarde se faz favor obrigado. Queria 6 pães por favor. Costumava comer no carro das compras. Um hipermercado. De pessoas. Escreve um texto para o curso, escreve um texto para o urso do curso. Tenho nojo dos meus acessos de liderança aos 6 ou 10 anos. Mas eles estão em todo o lado e não estão em lado nenhum. "A culpa é do neoliberalismo". Mas ninguém é neoliberal. Universidades, senhores doutores a nata flor fina da sociedade. Sê adulto tem maturidade: tu assediarás, tu censurarás, tu gozarás, tu desprezarás, tu controlarás a subsistência de miúdos e miúdas. Eu viverei, tu não saberás, ele não saberá, nós não saberemos. Ou. Só agora é que descobriste? Ou. Toda a gente sabe mas ninguém faz nada. A elite boa contra o grande poder económico: grandes políticos, grandes professores universitários, grandes juízes, grandes escritores & artistas. Eu viverei mas claro. Eu difamarei. Eu não saberei o que é sofrer a sério. Eu entrarei nos jogos olímpicos do sofrimento. Eu nem falarei, «mas será que o Francisco está disposto a ouvir o outro? Estudamos a opressão, estudamos o lugar de fala [o luar de falo] e a subalternidade. Já Foucault dizia, o poder está em todo o lado. E já agora não seja. Pessimista antropológico. Não está atento às grandes mudanças da nossa sociedade. Até temos mesmo uma Spivak qualquer a dizer: "o ventriloquismo do subalterno que fala é a especialidade do intelectual de esquerda". Sabemos tudo, prevemos tudo, absorvemos tudo.» 

Nem acredito que este texto já está a descambar. Nisto quisto. Crítico crístico. Vida adulta. Cara Personalidade. Põe mais cordialidade no charro. Até queimares a nossa juventude toda. Para que não haja sangue fique só esta linha entre o teu pódio e o meu ódio. Esta igualdade por estratos entre o teu negócio e o nosso tecido ósseo. É isso e o bullying é um bolo. Por isso traz, uma hiena remelosa colega lambedor de cus contigo. E brindemos intravenosos: não à atomização, viva a democratização. Ah e que alguém inaugure bem dentro e fundo! Com pregos e pregadores até não doer já sem se ver. Um outdoor com marquise a representar o meu enforcamento a olhar para ele. Com suíte e #sweet: um voto na mudança. Para que possa viver no corpos dos outros. E mudar-me grato para uma casa maior.   

Professor Doutor Estaline em cada canto e banco. Santo sem sangue sanguessuga presidente director gestor coordenador patrão CEO accionista. Consigo ver o meu futuro no fogo. E consigo ver o fogo no futuro. Arde. Até que já não consiga ver o futuro no fogo. Por isso, vou ali só. Às 7 da manhã num fim de semana de 1999. Pedir à minha mãe para ligar o fogão. Para comer cereais de chocolate e mel sem leite de falo. A coisa é que agora eu consigo e não queria. Consigo ver o falo na Expo 98 e o meu estômago não é o que costumava ser. Consigo ser o meu passado em cinzas. Vomito para dentro. Porque me deram outra vez o mundo para o jantar. E agora vejo no Gil a mascote parida. Entre o senhor doutor no gabinete e a secretária que lhe serve o café. Estava mesmo a pedi-las não consigo dormir. Está tudo estragado e eu devo estar grávido do amor profundo. Entre o mundo e o imundo. Espero que o meu orientador lhe chame: "Enganos: um património para o futuro". E espero acima de tudo que seja feliz cresça saudável seja livre. Para crescer com complexo de Édipo e afogar a mãe no oceano. Para saber que os Descobrimentos são um assunto de estudo e os Ocultamentos são um assunto de estupro.

Vai usar uma capa vou branquear-lhe os dentes. Logo aos 5 anos. Como se fosse 1998. Logo aos 5 danos causados pelo pescoço dos outros. Nos dentes dele. Puseram-se a jeito o rapaz não tem preconceito. E pela altura em que eu for a verdade no fundo do mar, os pais da democracia cuidarão do resto. Perfume lábia contactos gratidão letrado vestuário adequado à circunstância progressista instrumentalizar os outros defensor dos pobres e oprimidos. O tom certo, certamente. Cordial educado etiqueta. Sóbrio. Com cargo. Com dignidade correspondente à dignidade do cargo. O meu querido filho um dia: sábia visão geopolítica atento à opressão do outro lado da Terra! Institucional como um prego na madeira de uma cruz. E do fundo do mar eu sei! Ele vai salvar-me de quem me afogou! Deus abençoe a reprodução cultural! O mérito e e o sentido de oportunidade lavaram-no até aqui. Aqui mesmo. Aqui não há censura, há apenas os constrangimentos sociolinguísticos inerentes à produção discursiva do ser escrevente.

Porque ele vai saber. A única coisa que importa é a gestão da sua imagem exterior. Sê um outdoor. Mudar de opinião conforme a plateia do gabinete ou da sala. Tem toda a razão. Não tem nenhuma razão. Sou neutro. Que importa? Sê um outdoor. Vai alargar o período experimental de três para seis meses em caso de primeiro contrato de trabalho para proteger os jovens que um dia também ele foi. Sê um outdoor. Vai dizer que pensou em cortar um texto de uma queixa face a abusos de poder mas não o fez. Sê um outdoor com marquise a representar o meu afogamento a olhar para ele. Uma pitada de sal e um je ne sais quo de neutralidade. Vai dizer que vai fazer o que não vai fazer. Sempre isto com episódios diferentes. Segreda-te isto aquele que segrega: "se não distorcemos a nossa imagem pública alguém a distorcerá por nós". Vai saber: adaptar-se às exigências da sociedade transparente do sujeito digital. Vai adorar: a legalidade feita à medida da sua superioridade. Imunidades ditas e interditas. A ética assobio para o lado que acaba na legalidade. Ética cada um tem as suas é como as cuecas.

Porque ele vai saber. A verdade é um complexo conceito filosófico. Por isso o melhor é mesmo. Não ser burro os outros também fazem não sou só eu. Jogar o jogo social adulto pelo vácuo do poder. Dois colhões e um quinhão. Eu, em nome do Pai, do Gil e do Espírito Santo, somos o bem comum que controla a vontade voraz de comer cereais de pequeno-almoço de crianças anómicas e glutónicas que só querem chocolate e mel. Eu somos eles é. Não sejas populista não há nós e eles, diz a conta bancária acedida a partir da grande moradia com piscina por um chefe de gabinete que trabalha para o chefe do chefe de gabinetes que foi a 200km/h para uma reunião de emergência burocrática, logo cumpriu a lei. E logos é razão quer dizer que tem razão. Tudo o que tem é fruto do trabalho que delegou em cinquenta pessoas que delegaram o trabalho em quinhentas que delegaram o trabalho em cinco mil. Do complexo de édipo ao complexo de épico, o meu filho vai saber usar os milhentos corpos serviçais chantageados para o seu bem de todos. O dentista disse até que. Nem que tenha que lhe pôr um aparelho de Estado nos dentes para mentir com eles todos e mudar-se grato para uma casa maior. 

E um dia o meu filho já pai, inscrito nos livros de história benfeitor dos grandes índices estatísticos estátua erguida retrato numa reitoria ou num tribunal, vai saber a arte de dizer tudo em poucas palavras. Aquela arte de sublimação clínica dos grandes oradores e escritores  "O texto do Francisco que eu decidi não cortar e escrito sob a ameaça de desemprego e difamação (que o levaram a retirar os nomes das pessoas envolvidas) é uma apologia da ideologia do ressentimento. Nada propõe, tudo destrói, só falácias ad hominem. E eu até sou contra o uso abusivo dos recibos verdes, mas enquanto for permitido é normal que o nosso sindicato a isso recorra. A nossa sociedade plural é constituída por diferentes grupos de interesses que discutem ao domingo num piquenique no parque. Cada um defende os seus interesses consoante a posição em que se encontra. Perfeitamente normal o autointeresse. Sejamos sérios e não difamemos a verdade. Está a ser monolítico. Cada macaco no seu galho e cada senhor no seu trono."

Eu sei bem que o passado sabe bem resolvido, mas como é que se passa dos setembros expectantes a isto quisto, crítico crístico? Um novo ano lectivo, começos frescos e aquela sensação de aventura, autoimportância existencial, e todas as pessoas com que cresci ao lado... É como naquela canção de The National: "I am secretly in love with / Everyone that I grew up with". Havia um certo princípio cinematográfico, uma narrativa. Foi-se. Quero dizer este é o meu chão, quero dizer EU EXISTO e acabo fora de órbita. Caiu-me o tecto do apartamento de cima em cima, perfurou-me o chão e não estou, não sou, não vou. Parece mesmo que o mundo se foi embora e me deixou aqui. Só vejo a silhueta dos mitos. Nos actos banais, nas lógicas discursivas, nos tacticismos repugnantes. Quando ligo a televisão e vejo um jornalista, quando vejo a constituição dos painéis de debate, quando vejo dar-se quase tudo por garantido como se este regime de merda fosse efectivamente democrático - entendendo democracia numa sincronicidade de fins e processos. Um grande simulacro de debate institucional da direita à equerda numa janela de overton com o tamanho ajustado a uma casa de bonecas. E a única coisa que abomino mais que o mito da igualdade, da liberdade ou da meritocracia é o mito das muitas pessoas com poder e acção partidária, institucional, política, universitária que "tanto fazem" pela democratização. É doentio que não se saiba desintegrar conhecimento técnico de privilégios salariais, legais, controlo industrial de corpos... Tudo o que percepcionei, experiencei (ou que vi/soube que outros experienciaram) nos últimos 4 anos, desde o fim do mestrado à maior parte de um doutoramento enquanto bolseiro... Puro esgoto.

Sinto-me a silhueta da luta pela hierarquia das pessoas boas. Outro modo de dizer: EU NÃO EXISTO. E lá vem a ladainha que o que existe existe como garantia que um grupo de pessoas não se torne detentor dos meios e estruturas subjugando todas as demais. Soa-me familiar. Do Estado às empresas, das universidades aos tribunais... quase todo o universo laboral. Curioso que a ideia não fosse antes, sem deixar um enorme vazio legal que permite um hiper-poder implícito, a desierarquização mais directa possível. Certos princípios de não agressão e discriminação e a partir daí, cada pessoa do tamanho de uma pessoa, uma efectiva redistribuição dos recursos gerados pelo trabalho. Em condições justas, não acho que o problema fosse a pressão para o trabalho - com a ressalva de pessoas corporalmente debilitadas que não poderiam por isso ser lesadas... Enfim, cresci a acreditar numa farsa de um regime de farsa para a qual escola me domesticou bem ao cúmulo de um medo acima do comum por figuras de autoridade. Felizmente, a revolta, a repulsa e o nojo fizeram questão de me dessacralizar os maiores bandidos das nossas sociedades: os monstros absorcionistas. Calhou ter pais cujas possibilidades médias me protegeram disto tudo enquanto miúdo. Para o bem (não vou fechar os olhos quando alguém ao lado for vítima do mesmo) e para o mal (no que toca a acalmia mental e hipóteses laborais), nunca me vou esquecer dessa farsa. As noites não dormidas, o ser gozado, censurado, enganado, manipulado e instrumentalizado. Não me vou esquecer das pessoas e dos rostos que directamente mo fizeram. E que no alto do supremo desprezo e tentativa de psiquiatrização, ainda fizeram por me fazer crer que eu, um merdoso explorado que só quer ser livre, o mais autónomo possível com um salário médio ou médio-baixo e sem controlar a subsistência e a expressão dos outros, era "o invejoso, o imaturo, o ignorante, o privilegiado muito preocupado com o seu currículo/percurso académico". Fizeram questão de se cravar dentro de mim. Salvo morte, problemas graves de saúde ou outros contratempos não expectáveis, hei-de estar à espreita. E quanto mais me pisarem, mais a reacção, a exposição pública destes monstros de merda e dos seus actos repugnantes será uma realidade dura. A prazo de meses ou anos mas uma realidade como a que me tentaram negar. A nota de rodapé nas suas vidinhas para reagir às denúncias do "eu merdoso" há-de deixar de o ser. Tudo o que não se lembram, tudo o que não passa na cabeça de superiores hierárquicos colegas lambedores de cu desejosos de espezinhar para agradar a esses superiores hierárquicos, há-de fazer ricochete naquelas cabeças e na sua preciosa e falsa imagem pública. Até serem vistos como a fraude que são e se arrependerem do que me fizeram e do que fazem e farão a outros. Até se arrependerem com todos os dentes pela destilação e abuso de poder. E perceberem que há consequências. Que o ratinho delas pariu uma montanha. Que outros ratinhos se seguirão. Nunca mais me vou calar e deixar que me façam o que fizeram em salas, gabinetes, almoços e via email.

É quase certo que a minha vida laboral vai ser um inferno e uma miséria ainda maior logo que deixe de ser bolseiro de doutoramento. A parte boa do desespero a raiar no sangue é perder o medo, é perder algo a perder. Avizinha-se desemprego, salários de merda, exploração laboral até dizer mais não. Nada do que estudei vai importar, nada da minha propensão para a escrita vai interessar. O que, verdade seja dita, não é muito diferente do faz de conta que o que escreves e argumentas importa dentro da universidade. O estatuto, o prestígio, a formatação por limites de palavras, as necessidades de avaliação externas de cursos no que concerne a classificações, a posse de revistas, o gosto pela censura e o domínio de mecanismos como o peer review determinam tudo.

De universidades e complexos de salvador quero distância: já nem as aulas me encantam. Se nunca aí quis ficar, e embora também não vá ter hipóteses nesse sentido, quanto mais agora que percebo que estaria somente a mudar a minha posição. Pior que ser explorado é ser explorador, e para isso basta ser cúmplice, colega da fina flor que assedia moral e sexualmente; que se reúne oligarquicamente à porta fechada a decidir o futuro dos outros; que controla completamente a possibilidade de um mestrado ou doutorando escrever a dissertação ou a tese que quer escrever; alguns destes exploradores (desde logo os catedráticos) usufruindo de salários criminosos face a realidade do país e face à "desnecessidade" das condições materiais que tais salários permitem; que, corporativistas, são peritos em assobiar para o lado sempre que algum colega faz isto, mais e pior. Ou se entra para, para além de trabalhar, denunciar publicamente os podres ou faz-se parte do problema. Ao invés, são peritos na arte de vitimização do carrasco: é o Estado, o poder central e o neoliberalismo, aqui é tudo gente bem-intencionada tirando uns maluquinhos de direito/direita.

Prometi-me que ia escrever isto sem fins e acho que, aleluia, consegui. Estou a conseguir. Tudologia e Egologia. Sem escrever para revistas que me ceifam os textos, sem escrever para ursos com cursos, sem escrever textos teóricos de merda que cada dia me dizem menos por causa do seu enquadramento institucional, sem ser algo mais cuidado e detalhado que quero um dia publicar. Há anos que não escrevo sequer os habituais 4-6 poemas por ano entre os 18 e os 23 anos. Focando escrever, a única coisa que, actualmente, sei fazer no mundo com alguma qualidade, o plano é este: despachar uma série de comunicações e artigos universitários para quando acabar o curso não me poder culpar a mim mesmo pela miséria laboral, por não ter feito o que devia/conseguia em termos de quantidade e qualidade; para recuperar definitivamente todo o ritmo de escrita que perdi em 2019 e 2020 devido ao que me fizeram.

Depois disso, enterrar esta tese de doutoramento e encerrar, à minha maneira, uma série de lógicas, acontecimentos e pessoas institucionais e nojentas; dedicar-me depois a um conjunto de poemas e de contos que já vêm de trás visando uma publicação em livro que se calhar nunca vai acontecer. Costumava preocupar-me demasiado em algum dia ter alguma atenção crítica, que um número significativo de pessoas tivesse interesse/gosto pelo que produzi. Seria hipócrita dizer que, de um ponto de vista de escrita criativa, isso deixou de me importar, mas perdeu muito peso pela crise de 2019-2020 que me causaram. Procurando uma editora que permita alguma divulgação efectiva, o meu único critério de qualidade é satisfazer-me a mim mesmo, o que tenho em mente. Não reconheço qualquer legitimidade aos mecanismos críticos que existem, quando tudo depende de uma lógica de mercado e/ou de prestígio. (Muito como acontece com a universidade assim que se abandona o registo de avaliação estudantil de 0 a 20 - não há "competição" possível dos estudantes com os grandes especialistas das suas áreas; contudo também ele uma fraude, sobretudo em pós-graduações pela inflação generalizada de notas.) Quero libertar-me da minha juventude terminal - a infelicidade dos 30 está quase aí -, dar mapa ao território. Depois é possível que não volte a "escrever criativamemte". Ficará este blog, um registo diarístico não elaborado de desabafo espontâneo, mera organização mental, informação e uns parágrafos simples sobre algum objecto estético marcante.

Acho que vou ser mais hedonista, sem grandes objectivos existenciais para além de predefenir o experienciamento de alguns livros, videojogos, séries, filmes ou álbuns; catalogá-los em listas de preferidos ou experienciados como faço desde a adolescência. Quero paz, minusculidade, um "eu" passando este esforço existencial para concluir a tríade tese, poemas e contos. Os meus tempos de encantamentos musicais, cinematográficos e afins terminaram. Acho que nunca se volta àquela paixão inicial em que umas portas abrem outras e sentes os teus gostos a definirem-se, a diversificarem-se, um certo efeito surpresa com corrente estética x ou y... Que a maior parte das minhas bandas sejam de gajos na casa dos 40s/50s que parecem ter saído do seu período criativo de maior fulgor é sintomático disso. Os tempos de constantes novos álbuns e de qualidade desses grupos já lá vai, o que me lembra sempre que tenho praticamente 28 anos. Já não é só ver miúdos nascidos pós-2000 nos seniores de um Benfica, é mesmo estar a perder a juventude segundo todos os critérios. E na adolescência tinha os poros tão mais abertos, era tão mais sensível no quotidiano - saudades imensas dessa parte. Descobrir quase todas as minhas coisas preferidas, os melhores amigos que não tinham em forma de canção, filme, etc. Os fones no autocarro a caminho da escola, a caminho de casa, durante os intervalos... A década dos meus 20s significou uma decadência corporal chocante: da visão, aos ouvidos, ao maxilar, ao estômago, às costas. Quase tudo crónico e com algum impacto: com ter de usar óculos e ter dores de costas permanentes à cabeça. E alguns períodos longos em que me sentia tão mal da barriga ou da coluna que - com a hipocondria e o pessimismo à mistura - pensei poder ter alguma doença grave, degenerativa, potencialmente terminal. Mais que tudo, eu tinha um corpo, eu tinha um futuro. Sem decadência. Sentia-o no futebol e na corrida até aos 21. Como é que o futebol e a corrida desapareceram da minha vida?! Começou com os óculos e com as costas... 

Enfim enfim sem fim, eu era aborrecido para os outros, mas aquela exaltação interior perdida em mundos estéticos, no futebol, na autoimportância e na satisfação dos resultados escolares.. Podia sempre contar com a minha casa estética, com esses melhores amigos. Sólido como uma pedra nesse aspecto, até chegarem os problemas de saúde (neste preciso instante estabilizados) e os abusos laborais que me ceifaram os fundamentos de tudo, o apetite existencial. Ficar sentado num sofá angustiado a não fazer nada ou não conseguir dormir tornaram-se hábitos. A vomitar para dentro, assustado e angustiado de morte ou enraivecido e angustiado de nojo. Não ser. Não poder contar comigo.

O passado longínquo e menos longínquo teve partes más que cheguem. Desde ver partes do filme Lorenzo's Oil que despoletou a minha hipocondria, medo da morte e decadência aos 9 anos; desde o trauma em carne viva que se manteve durante quase um ano com pré-ataques de ansiedade; desde a morte de familiares na adolescência; desde as crises de confiança e exibicionais que me levavam a sentir uma valente merda a jogar futebol; ao bullying de que fui alvo por uma rapariga louca e por um suposto amigo no meu 9.º ano durante meses, enquanto todas as pessoas com que me dava viam e não diziam nada; à solidão opressiva que sempre senti de um ponto de vista amoroso e amistoso entre os 14 e os 21. E isto sem esquecer os meus próprios Descobrimentos: ser mandão no recreio da primária, ser homofóbico, racista, xenófobo, gozar com o aspecto físico de pessoas ou ser cúmplice com quem o fazia. Ser preciso o tal bullying do 9.º ano para ganhar o mínimo de noção, enfiar-me cada vez mais no meu canto, desconfiar de todas as pessoas e intenções, perder qualquer capacidade de iniciativa interpessoal. E o pior de tudo estava para vir: aos 16 manipular psicologicamente e mandar à merda a única rapariga com quem estive, do qual gostei e que se preocupava de forma genuína comigo. Fui um traste muitas vezes e nada apaga isso. Aí bati a escala. Só aos 20, depois de ter um gostinho de ser manipulado emocionalmente e levar uma tampa monumental, ganhei doses cavalares de empatia. Mas o que fiz fiz e talvez tenha sido aquele rosto de nojo interior que hoje outros me são.

Saudades do Hi5, o MSN, o perfil customizável do primeiro, os sons e as conversas no segundo. Todo um mundo social internético que surgia aos 13. O Benfica. Sempre o Benfica. Aquele onze de 2009/2010, aquela equipa de 2013/2014 e as finais europeias perdidas. A primária em Caria. O 2.º e o 3.º ciclos em Belmonte, o secundário na Covilhã. As paixonetas secretas e invisíveis por raparigas. Vergonha, medo de rejeição, coporizar ideais em pessoas desconhecidas. Pancas. A minha única namorada no 9.º ano e as borboletas iniciais, as bandas sonoras dos momentos num tempo em que todos os meses, momentos, anos e períodos tinham uma playlist, uma dada ambiência. Gostava mesmo dela e depois levar com bullying, as minhas dificuldades de comunicação... Abafar tudo, sentar-me sozinho nos corredores externos e internos da escola. Não ter amigos. Ir para a Covilhã no secundário. Humanidades depois de uma experiência patética em Ciências e Tecnologias: o ex-aluno excelente com negativas a Matemática, Biologia e Físico-Química. Não fui feito para aquilo. Criar este blog e um ponto de ligação com o exterior. Autognose e expurgação. Gostar e precisar cada vez mais de escrever Voltei à normalidade escolar. Tudo 18s. Uma crise de acne grave durante 3 anos, chegar a faltar a aulas por isso, ter vergonha de ser superficial por isso. Esconder tudo tudo tudo. A minha cara nojenta. Sentir-me sozinho. Ansiedade social. Tremer a comer na cantina, mal conseguir levar o talher à boca. Ter vergonha no bar, a pedir o que queria e sentar-me num canto. Não tenho saudades disso. Mas a certa altura ambientar-me. Pensar ter amigos, dois deles o típico contexto situacional de ter alguém para preencher espaço e não estar sozinho. Mas com altos e baixos, o J. ficou para a vida. As conversas sobre emoções e coisas abstractas, livros e filmes, raparigas. As saídas à noite e as bebedeiras. Ficar apanhadinho por uma rapariga no 11.º ano e sofrer internamente com isso. Um caso mais grave do já habitual.

E depois Coimbra. Surpresa Surpresa. Pensava ficar em casa. Mas Estudos Artísticos, a minha cara. Abandonar o futebol federado. Não compreender as praxes. Aborrecido de morte. Não conseguir aproximar-me de ninguém. As pessoas a desistirem de mim por ser tão fechado. Não sentir conexão com nada ou ninguém. Mas notas excelentes, adorar as aulas e os temas. O meu mundo estético a fruir em paralelo. No meu 1.º quarto. Decidi arriscar. Pela primeira vez na vida longe dos meus pais. O curso e sentir. Que precisava de me autonomizar. Mas voltar muitos fins-de-semana a Caria. Falar com o J. e com mais ninguém. Diferente da escola, cada um tinha a sua vida. Sem grades. Avulso no mundo. Momentos de solidão excruciante e pensar que ia sentir-me assim para sempre. Cada vez mais. Ir correr ajudava-me. Depois o 2.º ano. Fazer psicoterapia para a minnha ansiedade social. Safar-me um pouco melhor sozinho. Ir correr muito mais. Ser usado pela tal rapariga de que gostei. Achava: a minha única chance, temos coisas em comum, dei a entender o que sentia. Nada contra. Até um gozo repentino. O choque. A minha primeira rejeição. Tremores e frio no corpo. Não ter apetite. Afastar-me o mais possível de toda a gente. Sentir-me instrumentalizado. Pedir desculpa à rapariga com quem tinha estado no 9.º ano. Ficarmos bem. Falarmos às vezes nos meses seguintes. Espero que ela seja o mais feliz possível. Perceber os meus actos nojentos no passado, o que custa na pele. Querer ser diferente. Sentir-me revoltado por ter sido usado como um ego-vibrador. Às vezes é bom ter alguém que goste de nós. Ficar assim durante meses. Melhorar durante o verão. Muitos torneios de futsal, bom estar com os pais.

E depois o 3.º ano. Vê-la todos os dias e sentir-me horrível. A proximidade piorou tudo outra vez. Conhecer a T. Setembro de 2014. Qualquer contato amistoso com alguém era relevante para uma formiga. Mas não parecia relevante para uma hipotética pessoa normal. Ter duas aulas por semana com ela. Tentar afastar-me para não me voltar a sentir usado. Como me senti desde os 14... Uma ou outra conversa casual. Um dia encontrá-la a caminho do meu prédio. Calhar vivermos na mesma rua. Tornar-se hábito voltarmos juntos da nossa aula comum. Conversar. Começar a gostar dela. Irmos juntos ao cinema para um trabalho da faculdade. Jantar com ela. Desabafar, abrir-me e contar-lhe tudo, o que tinha acontecido no ano anterior... Aproximarmo-nos. Algumas hesitações, mas tudo tão rápido. Estarmos sempre juntos. Vivermos juntos antes de realmente vivermos juntos. Não me voltar a sentir sozinho como me senti antes. Parecia utópico, impossível. Não computava a possibilidade. Depois a saúde, os abusos universitários. Ela ajudar-me no meio de tudo. Partilharmos ideias, filmes, livros, séries, videojogos, comida, piadas internas, tudo. Nunca pensei ficar em Coimbra. Fui ficando, fomos ficando. Coimbra como casa. Bolsa de doutoramento. Finalmente juntos numa casa sem estranhos. Cada vez mais hábitos, lugares visitados e mapeados na cidade, caminhar quase todos os dias. Ainda assim, sonho quase sempre. Com os tempos de escola, colegas de escola, futebol. Caria-Belmonte-Covilhã. Coimbra nunca vai ser casa absoluta. Algo irresolvido do passado. Ou somente. O sítio onde fui uma pessoa no mundo. Saudades das pessoas com quem cresci. Sinto-me errado como o glitch do missingNo.

E... Azar nos génes, maus hábitos, envelhecimento, o que seja. A inevitabilidade dos corpos cederem era suficiente. Doenças mortes acidentes. Era suficiente. Razão para não dormir à noite. Mas não. Assediadores, pulhas, autênticos escarros percepcionados como disso antítese a dormir à noite à custa de outros não dormirem à noite. Estarrecido com a podridão. Perdi-me a mim, perdi o mundo. Roubaram-me a juventude, sugaram-me o que restava dela. E mesmo assim. Chamam-lhes salvadores. Esquecem-se do complexo atrás.