Baile De Máscaras Atropelado
Começo pelo fim. Se há certeza que os últimos meses
instalaram em mim é que a tecnologia é um tema dilemático para quem não
pretende existir na penumbra de um véu. Que fichas colocar em jogo? Por
que movimento optar? Onde se inaugura o demasiado? Como reagir às
necessidades ou pressões sociais? É possível simplificar a questão a um
“sim ou não” quando o real e o digital mergulham na mesma água? A minha
resposta é uma anarquia interna, mas abraço a busca de um trilho a
seguir para um dia domar esse pathos secundário.
Pensando os objectos como portadores de uma
natureza evocativa, diria que a procrastinação é a maior armadilha
regular. Disfarça-se em generosidade. Tamanha informação é um convite ao
oblívio do mundo físico, tendemos a esquecer o que, em primeiro lugar,
nos levou a utilizar o dispositivo. Ao mesmo tempo, ele transforma-se
nos nossos problemas, pesquisas e desvios. Os aparelhos induzem
comportamentos e estes são fundamentais para que eles exerçam as suas
funções. Definimo-nos mutuamente e indissociáveis numa relação
simbiótica. Somos ambos o sujeito e o objecto. O excesso (impreciso)
interrompe a voz da consciência e descorporiza o indivíduo num
espaço-tempo congregante e automatizado. Com moderação, os utensílios
são uma alavanca para a determinação da nossa própria identidade. Podem
ser um espelho construtivo, propiciando uma apreensão das lacunas da
nossa realidade.
Saber se recorremos à tecnologia porque estamos sós
ou se a solidão advém do seu uso é uma pergunta primária sem réplica
certa. Não obstante, resvalo para a primeira hipótese.
A vida citadina per se, por exemplo, é
desde há muito considerada uma experiência crua e de distância
emocional. A multidão é imensa e, no entanto, rodeados de
possibilidades, muitos sentem-se formigas esmagadas. O meio digital
permite inebriar o espírito desses demónios. É um lamento num bar, a
garrafa que não largamos até bebermos o vazio. Partimo-la em estilhaços
nas redes sociais online. Onde ninguém tem de nos ouvir, onde muitos o
poderão fazer. É um diário sob a forma de palco subterrâneo e cativa-nos
a eventualidade de uma audiência (tal expectativa origina um efeito
placebo).
Mas se as pessoas se encontram alienadas não seria
mais lógico procurarem contacto interpessoal físico? Sim e isso ocorre, o
que se alcança é que não satisfaz. Quantos são aqueles com quem
mantemos uma relação íntima, de partilha de anseios, sonhos ou medos?
Uma boa parte retorquirá com uma mão fechada. Por norma, os diálogos do
quotidiano assentam em conversa fiada e raras vezes essa fase de
fingimento e de vivência de um contexto semelhante se direcciona para
algo merecedor da palavra “humano”.
Cremos mais na tecnologia por experiências passadas
de má memória, por motivos de personalidade ou por consciência. Sabemos
que todos carregamos determinados conflitos nucleares, mas negamo-los
porque reconhecemos a irrelevância que eles representam para o
interlocutor e em razão de julgarmos que é incorrecto e egocêntrico
importuná-lo com eles (como se não bastassem os contratempos desse
outro). Cria-se também um obstáculo à afinidade, visto que há um estigma
social que envolve temáticas menos usuais (por exemplo, evitar falar da
morte, fechando investidas de um dos enunciadores com um redutor e
inapropriado “que assunto tão mórbido e deprimente”).
É no decurso dessa escolha condicionada que as
pessoas se tornam “solitárias em conjunto” e projectam na máquina as
suas emoções. Vulnerável aos dispositivos, o ser humano edifica-se em
avatares extasiantes. Somos uma playlist, um top de filmes preferidos,
uma fotografia de perfil ou as palavras que divulgamos num blog.
Ademais, nessa megalomania de conhecer tudo, de estar ligado a tudo, de
seleccionar aqueles com quem queremos comunicar e de inventar
identidades, eleva-se uma gratificante fantasia de controlo.
O oximoro é que a desejada conectividade em linha
acarreta como pré-condição um sujeito enclausurado numa torre de marfim.
O objecto é o único receptor de afecto, uma prótese em que se prolonga o
corpo e a sua ausência uma temida e desorientadora dor do membro
fantasma.
Depois, no fundo, mostramo-nos um Narciso frágil
que fita o lago e desespera por nele constatar outros a observarem-no de
volta. Nas palavras de Sherry Turkle: “I share, therefore I am”. Essa
reinterpretação do cogito cartesiano ajuda a explicar uma noção de
alteridade em que os demais são meras ferramentas ao nosso serviço; a
expectativa é que validem um pensamento ou sentimento, sendo também eles
um objecto que serve os nossos interesses. Nesse vício de dependência
externa e de feedback instantâneo esquivamo-nos ao confronto com a
realidade e transcender o vácuo interior rumo a um estado de solitude
(catalisador de empatia) revela-se uma miragem.
Escondemos as vontades nas (in)acções. Porta
trancada e janela aberta, cruzamento permanente entre o não ser
(digital) e o ser (real). Somos salas de espera a aguardar por nós
mesmos, por amizade e por amor de um outro a que não legitimamos vida
absoluta. Contradição das contradições, revestimo-nos de uma bolha de
média mentirosa, de confidências endereçadas à esperança que alguém
entrelace os dedos nos nossos. Inseguros, frustrados e conformados; a
inércia actua e o corpo recua. Somos um zero dançante ou um airbag
constante.
Rebenta a bolha do limbo e somente na tragédia nos
fixamos no lado físico e presencial da fronteira. A verdade é eterna e a
distracção efémera, diz o acidente. Quando passámos uma existência a
comportarmo-nos como o resultado de um…