quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Miosótis e Dentes de Leite

Um dia caiu-me um dente de leite numa miosótis. Não te esqueças.

Ainda me ressoa estranho passar a ter tantos "no meu tempo" dentro e fora de mim, ser o lado velho de tantos termos de comparação. Vinte. Nove. Anos! É "engraçado" como as grandes mudanças só se impõem na psicosfera bem e muito depois dos grandes marcos. Mais surpreendente, porquanto fui uma criança prodígio no que toca a uma nostalgia antecipatória: lembro-me perfeitamente de pregar aos meus colegas que aquele seria o nosso último dia de sempre na escola primária, lembro vagamente o instante preciso de ultrapassar as grades, o portão. Lembro melhor que tudo um certo dramatismo afectado durante o recreio desse último dia: eu dava, sozinho lasso ao sol, a volta à escola como se soubesse em 2003 que 19 anos depois ia estar aqui, agora, a (d)escrever isto. 

Aconteceu mais vezes mais tarde... Por exemplo, o último dia de aulas em Belmonte em 2009, mesmo que o grosso desse período do 5.º ao secundário me ressurja menos porque mais mundano, tédio e cru, entalado perante a surpresa de ser de uma hiper-flexibilidade infantil e o gume passional/auto-gnóstico da adolescência. Afinal foi aí que conheci muitas das pessoas mais importantes e constantes para mim, de toda a minha vida diurna. De quase ninguém fui mais que um figurante, mas vários daqueles humanos são tanto o capital espiritual dos meus bons momentos e recalcamentos, e dane-se se não sonho mais com eles e com os tempos de escola do que com outra coisa qualquer, misturados nas aflições presentes doutra coisa qualquer. À parte a T. e o J. noutra estratosfera e uma ou outra pessoa do secundário, não conheci mais ninguém, mais ninguém me conheceu. Sentia-me visto, visível, as pessoas conheciam-me, uma espécie de pico de anão da minha popularidade. A justa popularidade à medida de ser 1, específico no mundo. Confortabilidade... E no entanto eu sei, só assim o é à distância de conseguir destilar daí as mágoas, a violência, o bullying do 9.º ano que me estragou qualquer vestígio já escasso de iniciativa interpessoal. Toda. A gente. Via. E não intervinha a minha agência humana morreu aí para ressuscitar nos braços acolhedores de um robô. Abraçava qualquer chão onde pudesse dissipar-me, desvanecer-me: eu e os fones (Inserir *Tornar-me a ausência que toda a gente foi para mim*). Só eu e os fones. Querer explodir vida, mas contê-la no chicote mental: não fales primeiro, não dês atenção, não te magoes. Desaparece!

Se houvesse paraíso - e eu contentava-me com a nostalgia terapêutica de uma simulação tecnológica assim à "San Junipero", como em Black Mirror -, essas pessoas iam estar lá, junto com as miosótis de todos os meus momentos preferidos. Flores onde deviam estar caras, caras onde deviam estar flores, não quero saber é tudo igual para mim. Uma grande unificação no corredor da escola, no campo de futebol, mas cabe tudo no meu velho quarto de crescer em casa dos meus pais. Não nos íamos beijar, não nos íamos abraçar; sem pretensões de amizades que nunca o foram, tão só bom dia ou um olhar cúmplice e silente de reconhecimento: vivemos na casa do mesmo tempo do mesmo espaço ao mesmo tempo. Não estou sozinho. Nunca estive sozinho. Pequeno e todo. Parabéns! Parabéns a todas as crianças, suspira a retrovisão a devolver o bolo. Até que não reste nenhuma: mania das grandezas. Não há universidade não há emprego, não há hierarquia não há salvadores; só este texto cabe tudo lá dentro. Apareço! 

Quero quero quero! Quero ser pequeno posição fetal. E sou. Afloro molares caídos e dentes de leite aqui. Com a irregularidade torta e proeminente dos dois da frente, só para comer as saudades da imagem que tinha das coisas: sem regra e esquadro, com fadas em frascos em fontes. Como no Zelda, o som mole da restauração e ganhar corações. E falir em sono profundo no escuro da minha gata de infância, por isso nunca paro. De cair em câmara lenta na almofada que tudo é. O brilho que tudo é. Suficiente. Surpreendente. Os meus olhos vêem-se ao espelho de trincar miosótis e... e logo... um bosque de heras onde a minha silhueta devia estar. Num esquisso em que já não destrinço, os dentes do leite com bolachas de uma manta polar de chocolate. Assim lassa a glória do mundo. E de repente todos me vendam a ideia que as coisas não foram como me venderam que iam ser... Para que a inocência em segunda chance seja melhor do que era suposto ser. Como uma faca em reverso a deixar de doer, eu como mesmo! Como o oxímoro do conceito dela e aprendo a saber perder-me na fragilidade dum universo situado dentro da faca. À medida que a lâmina se refracta em cada e todo o lado, é verdade! O meu ADN desintegra-se na distância quebrada entre a mente e o meio! Pois o que chamar ao sangue que tudo é? 

Finalmente despojamos os exosqueletos de histórias, impérios e egos, finalmente feridas expostas. Posso bem viver aqui. Podia bem morrer aqui. Falar, mas nem preciso, porque sou... o miúdo protagonista de um JRPG dos anos 90. Todas as noites a minha mãe volta a acordar-me de manhã como se eu fosse uma aventura em 16bits e o fotorrealismo independesse do mundo. Ela abre-me as cortinas em invasões sonoras de éter e melancolia, eu levanto-me deitado em 2D. Cenário expressionista tecnologia da imagem em que nasci, deus estou tão acabado com o progresso. E perspectiva de cima para baixo, as coisas não param de me regressar. Estrada água ferrovia metro ou céu, o fotorrealismo do meu coração emendado. Vai dar bem ao ponto, em que a bagagem ainda não era tanta ao ponto. De desistir pela incomunicabilidade... das grades da escolha depois das grades da escola.

Pois afinal para quê argumentos?, se mais um leviatã conta a opressão como ontologia da representação humana. Mas fotorrealismo do espírito! E eu tão resisto a tentação! De desaparecer. Apareço! Apareço! Apareço! Com miosótis e dentes de leite na mochila, vou do mundo para a terra pequena. Agora cheia! De novo cheia! Com flúor no hábito, sem cesura do 1999 com que cresci. Onde a casa de infância era o tempo de ser um anjo na neve de magnólia no esplendor da relva do quintal. Quando a árvore à entrada ainda era pequena, desalfabeto e um milénio de possibilidades por vir. Parecia um T. T de tudo. Ficava mais à entrada e a minha família não tinha mortos nos sonhos dos que ficaram por cá.

Fico triste eu detesto a minha consciência de mim não consigo sair! Tarde demais. A dor vem em ondas até um dia vir sempre. Numa cama de hospital. Melodrama, lol... Mas não há melodrama nas espirais de raiva angústia que ficam fora da linguagem. E eu tão gostava que não tivesse aprendido, essa mesma linguagem que me deu o fora dela só para ficar mais dentro ventre dentro de mim. Verme. Este não sou eu este não sou eu este não sou eu este não sou. Eu este não sou proclamo, do alto da minha desintegração, que o texto tenta-me acontecer... mas não consegue, falta corda. Desapar...

Mas twist afinal isto ainda não acabou! Reúno os cabos fios eléctricos das minhas consolas, abro um espaço na memória do meu braço esquerdo partido e... Injecto média nas veias! Reapareço! Sinto-me representado! Sento-me representado na minha própria escrita e agarro o comando nas mãos. A televisão está ligada, num filme um rapaz adolescente regressa a casa da escola. A pé. Fitamo-lo lateralmente. Em dupla exposição, consegue-se entrever um prisma triangular permanente no fundo do ecrã; refracta a luz em arco-íris até à saída direita da cena. A certa altura, ao deparar-se confusa com um cruzamento, a personagem que caminha nessa direcção pára. Há duas placas para casa. Cima direita. Ou um videojogo? Pára até que deslizo os analógicos do comando. Cima "estude para um dia fazer o seu próprio filme" lê-se no subtítulo da placa "casa". Direita "estuque para um dia fazer o seu próprio filme" lê-se no subtítulo da placa "casa". Cima senhores com hábito talar anunciam-se porteiros. Direita senhores com hábito de falar anunciam-se parceiros.

Um hálito exalam simpatia e algo me soa terrivelmente errado. Saco da imaginação uma máscara de gás. O cenário está demasiado verde na estrada da minha ingenuidade perdida. Têm grandes gráficos podia ser como eles. Fotorrealista. Dizem-me cima e direita. Positividade tóxica. Por todo o lado nas bermas, casas geminadas atravessam um bosque de magnólias do meu tamanho de adulto. A silhueta dos telhados forma-lhes com o céu uma dentada perfeita, branca e geométrica como a neve a cair do paradoxo celeste azul. Sorriso perfeito tarde de verão flocos de neve. Açúcar um gelado com a nata da sociedade se alguma vez o houve, está aqui! Na banda-som, pássaros campestres pontilham o bom gosto da Nona Sinfonia! Urbanidade! Cima e direita, sem passadismo até os cravos nas lapelas tocam e democratizam o coro num êxtase de igualdade de oportunidades.

Papéis de condições de entrada. "Destituição da inveja". "Penhorar o corpo, precisa de desaparecer para aparecer". Só preciso e sou preciso... "Todos contamos". "Saídas profissionais: Grande Unificação; Voltar a Casa". Uh?  Que raio de tretas, tetris e ESTAS CASAS SÃO FEITAS DE CORPOS!!! Merda, eu esqueço-me que estou a escrever um texto dentro de um filme e exclamo para fora da representação. Todos ouviram. O que vi. O negativo das promessas, o erro 404 de falar do Leviatã no meio da sala. Na praça pública devassa da via vida privada!

Cima e direita. Os porteiros e os parceiros aproximam-se. Mas de facto afinal um videojogo. E retrocedo. Na esquerda donde viera proibido passar uma rede súbita não estava lá exclama "propriedade pública". Reabro o espaço na memória do meu braço esquerdo partido, primeiro trauma, primeira dor e compreendo. Como tenho uma faca em reverso a deixar de doer, eu comi-a mesmo! As memórias e os média saltam-me a rede súbita para trás. O passeio de barco e o leopardo macio que os meus pais me compraram no jardim zoológico. Eu a confundir couves com alfaces e a minha avó a rir-se. Os resultados do Benfica no teletexto espreitados pelo empolgamento intervalar de olhos tapados com os dedos. Lanchar leite com bolachas e chocolate só para retomar o afogamento diário em canais de desenhos animados: Canal Panda e Disney Channel. Estar adoentado no quarto, tinha uns 7 anos, véspera de feriado ou fim de semana e o meu irmão chamar-me para o ver jogar e jogar The Sims no computador; tirar as escadas da piscina e dizimar famílias hahaha; não consigo ouvir o piano da faixa "Building Mode 1" sem ficar em frangalhos emocionais. 

O prisma bate - sístole/diástole - como um coração. 

Voltar a casa numa tarde livre do 9.º ano e aplacar-me à porta de entrada, sorrir porque isto está mesmo a acontecer, ela também gosta de mim. As noites de Verão no polidesportivo de Caria, jogar futebol com as pessoas de sempre e voltar a casa mole, leve numa reta de 200 metros onde podia pairar para sempre. Jogar, jogar e jogar Flatout 2 numas férias da Páscoa, no quarto e pc que costumavam ser do meu irmão entretanto universitário; a banda sonora com algumas das minhas bandas preferidas, Yellowcard (a "Breathing"!), Rise Against... A minha crise desistencial à beira do 12.º, projectar morte e decadência em qualquer acção; expurgar-me a escrever um poema; e quase desmanchar-me a chorar sem ninguém saber depois de marcar um golo pela UDB... por me sentir carne, importante. Estar com o J. no último dia de aulas do secundário, "falhámos a vida", sentados num banco a ver miúdos mais novos, pensar que para nós acabou e será que podíamos repetir para ser tudo melhor? 2014, tentar curar-me de uma rejeição amorosa na universidade, de volta a Caria e ver filmes pela pen na tv deitado no chão da sala; nocturno adentro, embalar-me em duplos empáticos e ficar lá a dormir até de manhã. Essa foi a última vez em que voltei a casa quando ela ainda não era... um espaço-tempo intermédio de um grande fantasma ampliador entre o passado e o presente. E eu detesto detesto detesto a mudança, o envelhecimento de tudo e todos, habitar uma bola de destruição interna quando (não) volto lá.

O prisma bate - sístole/diástole - como um coração. Os de cima e da direita perseguem-me! Saltam a rede e à medida que eu recuo e me movimento em reverso numa perspectiva em rolagem lateral, a cena assume-se completamente enquanto jogo de plataformas. Conforme aí, tenho que saltar para evitar que me atinjam com bóias de salvação... bem apertadinhas. Merda, reforços provêm até da esquerda. Anunciam-se porreiros, verdadeiro partido do progresso. Reanunciam-se Senhor@s muito letrad@s com o hábito de talhar a dizer que é para o meu próprio bem comum. Levo com uma bóia nos cornos, mas resisto. Vêm curar-me do hábito de falhar. Porque não sei nadar sem fazer ondas. Levo com uma segunda bóia nos cornos, o prisma racha e estremeço. Mas persisto. Fico frágil por isso "era bem melhor que nos deixasse repor a propriedade pública", sair daqui para que liderem o combate à lógica da dominação... sem a minha devassa da vida privada. Uh, e então o que me é o prisma?

Eu não sei, só estou a lutar o futuro. Esquerda, direita e cima fazem-me um cordão insanitário “porque não sou especial”. Culpam-me de ser um indivíduo. A rolagem automática e lateral do nível progride na sua própria volição, e eu tão espero chegar a casa. Já nem sei onde, mas cada vez mais perto. Espero que sim… e “Esperemos que se encontre bem, com saúde”. Quando o prisma dói eu também doo, mas bolas “É importante ver as coisas doutro prisma”. Pelo que a gramática me corrige gentilmente e capiche? Que só consigo conjugar o que sinto se me estiver a doar. “Não somos nós, nada pessoal contra si”. Salto e escapo. “É uma questão de qualidade”. E à medida que recuo em reverso, apenas perfeito o horizonte é só um manto de doce de abóbora. Da campânula do meu quarto a lanterna da minha cabeça vê-lhe VHSs de apofenia no céu. Iluminação, apenas perfeito, tinha cara de universo! “Tem de tridimensionalizar o carácter”. Não! Iluminação, estou a decrescer desta vez. Porque iluminação, estou a crescer outra vez! Doce ou desmesura, tratado de tudologia. Assim bem como o Schulz dizia: “amadurecer infância adentro”.

Mas tudo aquilo miragem, vidragem só. Não estou em casa “os especialistas recomendam, os especialistas aconselham”. Terceira vez, atingem a personagem, “não se preocupe tem armadura de enredo”. O prisma ressente um terramoto no espírito. O prisma quebra e eu colapso. *Aqui duas linhas já curadas*. Sem Melodrama, ser humilde, ok não vou falar de um buraco negro supermassivo não ter tacto nem tecto. Sei que o nada acredita em mim, mas para ser honesto, já não tenho palavras. Passam-se meses. Leva-me meses a conseguir retomar este texto. “Texto rejeitado”. Leva-me meses a chegar a esta parte do texto. Ao videojogo.

Eu lembro-me. Do som do amarelo dela a entrar no MSN. Lembro de cor. Do Lost in Translation no dia 14 de Setembro de 2011. À noite, na sala escura, o 12º ano a começar. Terminar inundado nos corais citadinos e electrónicos daquele desespero quieto. Sentei-me e senti-me lá. Alienação. Tudo no mesmo dia em que leakou o álbum Neighborhoods dos blink-182. O meu mais esperado de sempre. Acordar, descobrir e “comprar” na net. Eu religioso com os fones dentro dos lençóis. Não existir mais nada sem ser a experiência de si em si. O tema de um fantasma na pista de dança a abrir. A guitarra enérgica e condutora com um senso atmosférico a abrir: “I'll never let you down, boy, I'll never let you go”. O Mark a harmonizar com o Tom: “It's like the universe has left me without a place to go”. A sintonia com os últimos dias de então. Andava com morte na língua estragada de nem o conseguir explicar: “Without a hint of light to watch the movement glow”. Enfim, e comigo o mesmo: “At first, against my will, but God invented chills”.

Futebol futebol futebol! Um dia na escola falarem-me disto, “precisamos de pessoal na União”. O meu pai levar-me de novo a Belmonte depois das aulas. (O que se ia repetir milhentas vezes!) Já nem sei bem, algures antes de um feriado em Outubro de 2005. Tinha 12 anos. Ficar combinado treinar daí a uns dias. Depois ficar lá. 7 longos e curtos anos. Ainda hoje sinto falta de mais 7. Naquelas condições, e só ali, na UDB. Com todos os altos e baixos, das melhores coisas que fiz vivi na vida foi com muitas daquelas pessoas. Colegas, treinadores… Por mais que eu fosse mais de ficar no meu canto. Sentir que acreditavam em mim, puxarem por mim. Faces familiares. O ar de cheiro gelado no velho campo de terra batida; acordar cedo e empolgado aos sábados para esperar a carrinha de caminho para o jogo; a maneira como às vezes nos transcendíamos em jogos grandes. Os meus golos… Hoje não consigo enumerar a quantidade de sonhos em que me aparece uma bola de futebol pelo meio.

De volta aonde não sei só estou a lutar o futuro. O videojogo com prisma, rolagem e cordão insanitário. “Cuidado com o que come pode ganhar cáries”. Um penso desdobra-se em pensamento, porque estou pronto para me foderem outra vez... Não diz lá mas já “entreli”: “Estuque para todos os dias jazer na nossa própria casa”, lê-se no subtítulo da placa "filme". Daqueles que eu vi vi em demasiado. Vivi. E volto vulto. A minha boca um canteiro de dentes desvitalizados. A tentar escrever a poética da entrevista de desemprego. Uma em que me esquivo entre mais rachadelas no prisma, porque não não ficava tudo bem “se depois pudesse vender o filme a alguém”. Não não ficava tudo bem com um “hipotético pote de ouro”. Mas é assim, a Terra rota, alguma horda comemora a doutro derrota, mais um líder branqueia os dentes no x-acto de te limar as quedas. Para que possa ter penso desdobra-se em pensamento, porque estou pronto para me foderem outra vez... E eu perco, volto ao jogo mais milhentas vezes. Não é fácil, mas a tentar não cair no cliché de saber ser rejeitado crescer pela adversidade. Como um homem letrado. Bem adaptado. “Uma questão de qualidade”, “sem tema apropriado”, “este texto rejeitado”.

Dançante entre tiros de bóias mal posso expirar… mas posso tudo introjectar. Realizadores e directores vinham colaborativamente curar… um reptiliano populista infectado com vacinas 5G. Mais caem de pára-quedas, outros vêm de baixo zoopoeticamente devires-toupeiras sabem o que é estar deste lado. “Em que o seu privilégio nem está”, medem as minhas características de sujeito histórico. Vêm vêm vêm de baixo, subiram a pulso de lavar a boca com bem actuais linhas de investigação. E escarram-me em cima, sem um milímetro de saliva, com exímia correcção linguística. Como se não me escarrassem. Sismos atrás de sismos no espírito. Dane-se, estou demasiado 50 por centro eu 50 por cento trauma... à medida que me torno nas reputadas palavras premiadas de um senhor sobre mim. Mas este vive no céu sem viver no céu. E nunca escolhi nascer, mas ninguém escolheu por isso está tudo bem… Mais, para ser perfeitamento honesto, “Nunca escolhi morrer dói mais”. Ainda assim, se me for permitido, nada contra. Eu estar no banho de imersão e desacordar com uma máquina de corrente de consciência ligada. Tosta humana. Acabar isto aqui e agora. Não mais tentar recuar na estrada. Não mais tentar voltar a casa. Porque não me sai nada pela via do sacro. Nem merda sagrada. Porque introjectei drones helicópteros na consciência de ser sempre uma merda insuficiente.

Eu lembro-me. Da noite de Dezembro de 2009 quando nevou em Caria, coisa rara. Férias de Natal. Os quatro em casa. Uma enxurrada de fotografias fixes do meu irmão. E quando olho para o nocturno alaranjado daquela recta branqueada, eu ainda devaneio “Isto vai sempre ser casa”. Ou “There’s no place like home”. Concordo, mas porque já não há três cliques que bastem. Não fiz som ao sair não consigo voltar. Ao globo de neve melancólico onde me aconchegava a ouvir Straylight Run. Quando eu ainda não lutava o futuro, com febre ligeira e músculos doridos de adormecer a contar… com a minha própria versão escolar da “Existentialism On Prom Night”. E devia ser bem a substância desta memória que me estava a despontar, quando a tentar voltar projectei no videojogo: “apenas perfeito o horizonte é só um manto de doce de abóbora”. Mas tudo aquilo miragem, vidragem só. Um tiro, estilhaços de prisma ficar ainda pior. Cair para debaixo do chão. Olá a mais um daqueles momentos em que a cabeça é uma espiral de raiva sem corpo só angústia exangue. Sou EU 404. Ainda pior.

Dane-se esta última memória, olho para aquela foto da estrada com holofotes de tigres convergentes e parece-me que era adeus. O plano final a correr sem os créditos finais da minha juventude perdida… para longe de mim. Faltou dinamite. Dinamite para me dizer: “isto é o fim”, mnemónica do apocalipse do teu quarto crescente. Enterrem-me lá, lençol de fantasma por debaixo da cor do chão. Só que sem cair. “Mnemónica do apocalipse”. “Mnemónica do apocalipse”. “Mnemónica do apocalipse”. Algo me diz algo aí, não sei bem. Olho para aquela foto sem a ver desde que vim para Coimbra, universidade.

De novo em jogo mais do mesmo. Prometemos melhores gráficos. Tridimensionalizar o seu hábito de falhar. Uma questão de percepção, coisas boas, foque-se nas das nossas obras. Não há maçaneta B. Nem aspas, já mal distingo o eudoeles. Em jeito de introjectar bem assim. Ninguém me fez nada eu é que sou insano ninguém me fez nada eu é que sou insano ninguém me fez nada eu é que sou insano. Insano numa trela e cordão. Mas aí vêm mais. As forças do realismo, pluridireccionais. Numa grande diversidade de roupas mantêm o hábito de talhar. Educar-me educação, para o meu próprio bem delas. Aí vem outra bala, directa ao coração da minha dívida de gratidão. Cobra-a quem me dá as coisas que me tira, e se me portar bem, porque se há porta, maçaneta e casa é à maneira do estômago de quem fica por fora. Comigo lá dentro não existo cá fora. Só tenho a minha própria consciência. De ver o mundo lavar esta merda toda. Só porque diz democracia num pin de lapela. Porque somos todos iguais consoante a dignidade do cargo… que te pesa em cima. Porque então a democracia sempre existiu chegado aqui tenho metal na boca demasiado doentio isto tem de parar! Ali na estrada, só estou a lutar o futuro, fada a flutuar na bidimensionalidade da minha qualidade gráfica. Degrado-me num sprite, e tudo melhor por isso. Finalmente! Acho que desta vez vai dar. Para voltar. 

Só estou a lutar o futuro. Porque falta-me voltar para fazer luto. Por todo o lado nas bermas, um bosque de magnólias do meu tamanho de infância germina sobre as casas geminadas. O mundo perde linhas na testa da estrada, não há lugar como um. Uma única casa (esquivo-me) ao fundo, a luz do meu quarto crescente ligada. Ainda em reverso, da sepultura à aventura as minhas sapatilhas crocantes nas folhas de Outono de mais mil Setembros adolescentes. Linda coisa frágil, porque eu tão adoro não saber o que não vai acontecer, quando saía de casa para à escola e sabia que ia vou voltar. O prisma. O prisma bate - sístole/diástole - como um coração. O prisma é a minha faca em reverso. E sinto sangue no meu tudo. Então…

Eu lembro-me. De demasiado já sem ter vontade de fabulizar a descrição para fazer de conta que não estou a escrever para mim mesmo. Factos: isto morre comigo e sem isto eu morro. 2000 ou 2001: aquela tarde em que colegas da primária me tocaram à campainha para ir brincar com eles num largo e assim fui empolgamento (sim, isto constitui um evento para uma criança eremita). Outubro/Novembro de 2006: tudo bem interneticamemte technicolor ao interessar-me por blink-182 a sério a partir da “I Miss You” na playlist de uma rapariga desconhecida no Hi5. Verão de 2008: noite e cama, com janelas abertas, num dos meus últimos espantos de aventura infantil, navegar a caneta e o barco de The Legend of Zelda: Phantom Hourglass para a Nintendo DS. Maio de 2009: descumprir os horários de sono impostos pela minha mãe, esgueirar-me do meu quarto para começar a ver Lost – a.k.a. gente quebrada encontra-se razão recíproca – no computador do quarto ao lado. Sem sentido tentar esventrar a incomunicabilidade do que só viveu e vive em mim. Um dia se ainda me apetecer vou escrever. Relatório autobiográfico, uma lista de apontamentos antes de só restar uma lista de desapontamentos. Poucas frases: um videojogo, uma série, uma canção, uma ambiência, um acontecimento, uma foto, uma pessoa. Ou junções disto. Tentar destilar a impressão essencial que é a razão de ser de dada lembrança.

Depois posso morrer… como em San Junipero. Canções pessoas filmes livros preferidos. Flores onde deviam estar flores, caras onde deviam estar caras, não quero saber é tudo diferente para mim! Quase 30 danos mas a ausência não é um. Apareço! O fim está perto a minha casa fica mesmo ali. “Do plano da representação à representação como plano”, o que a fina flor da sociedade te faz mas não diz, e algures eu lembro-me da T. dizer. A T. T de Tudo. Magnólia humana. Como precisamos do contrário. Da representação como plano ao plano da representação, e algures eu lembro-me...  “Mnemónica do apocalipse”, “mnemónica do apocalipse”, “mnemónica do apocalipse”! “Eu sou aqui”, lê-se no intertítulo dos meus olhos fechados.

Bem quando me preparo para a ajustar, a minha mochila contém a bala de uma última bóia. Sem miosótis sem dentes de leite sem mochila. Eu venho. Sem bagagem tenho de a deixar no chão percebo. Agora percebo. Sem máscara de gás a personagem abandona o cenário de uma estrada impedida. Abre abro o portão e, intermitente, às vezes nem duas dimensões. Não é sou um velho acabado antes do tempo: semi-paralítico, semi-patético. Não é estou tão farto hiato de dizer que um dia vai ser diferente. Nada sabe a tudo sabe ao desvanecimento longo de um clímax a vida à beira dos 30. Arqueóloga do banal, a personagem do videojogo entra pela portão e a magnólia. Quer ser pequena, farta de grandiosidade. Ouve-se uma canção melancólica de midwest emo anos 90. The Promise Ring – “Forget Me”, vai assim:

“Where forget-me-nots and marigolds
And other things that don't get old
Just don't get old
But between one June and September
You're all I remember
But I'm a lantern, my head a moon, I married a room
I married a room”

Abre a porta de casa. Entra. Casa, não há lugar como… Todas as banalidades, todos os momentos em que quis uma câmara interna e prometi a mim mesmo recordar-me desta precisa sensação, mas não vou, não lembro... e cada vez menos. Fora de mim. Mais dentro da terra. Velho. Estão todos lá, todas as minhas versões preferidas. O meu irmão a minha mãe o meu pai a minha gata Princesa o meu gato Tobias. A T. e o T. Ts de tudo. Tudo e todos ao mesmo tempo. Um dia não ia ser diferente. Não vai. Só pedia aquilo. Sem vida cortada em dois, ventrecasa. Sobe subo as escadas, luz ligada. 2011 há um adolescente depois da escola a descobrir e ouvir  The Promise Ring – “Forget Me” nos fones no quarto. Entro-lhe na silhueta. 2022 Já há um adulto a ver o filme My Winnipeg no quarto ao lado. Um filme sobre aqui era aquilo, ali era isto, mas também ver um mesmo edifício de há anos e ver o que já não se vê lá, esse tal pano de fundo numa foto mais importante que as pessoas nelas. Entro-lhe na silhueta. Afinal, a casa de infância é o tempo em que cada um podia ser tudo. Deixa haver sangue deixo haver sangue. Desalfabeto, eu também doo e doo bem. Desintegração, fico sem barba, só heras a unir miosótis. Tantas queridas catacreses de monstro sonâmbulo! a Princesa miou lá em baixo…

1999 Desço as escadas, há uma criança a jogar um jogo de plataformas na consola da sala. Entro-lhe na silhueta. Um dia a campainha toca, levanto-me representado e com veias e a minha mãe chegou do trabalho. Chuva torrencial. É Setembro e Junho ao mesmo tempo. Faz Sol corre corro corri para ir brincar para à rua. Um dia caiu-me um dente de leite numa miosótis. Não te esqueças. Mnemónica do apocalipse o mundo lá fora era o mundo cá dentro tinha cara de flor. Eu apenas sorri. Sorrio o sorriso do teu dente torto perdido onde deviam estar falhas. Mas, rapaz azul, só mesmo porque me esqueci.