domingo, 6 de fevereiro de 2022

Da Necessidade De Uma Auto-Etnografia Académica...

... ou como os poucos com uma réstia de decência num antro de sociopatas egomaníacos e falocêntricos disfarçados de "bem-comum", "colectivo", "progresso" e "inovação" admitem alguma coisa. Admitem para logo recuar... mas admitem: publicamente, para fora dos seus gabinetes e salas onde concretizam o seu projecto existencial de açambarcar áreas de estudo, trabalho e vidas. 

O excerto inicial do texto do David Graeber que transcrevo abaixo vai muito brevemente nesse sentido - intitula-se "Anarchism, academia, and the avant-garde". De resto acaba por se dedicar à harmonia entre "marxistas"/vanguardismos e uma instituição em que a nata desta sociedade digladia por posições de liderança. O mesmo é dizer, dentro dos quase todos que o fazem, quem consegue colocar mais abusos sexuais, assédios morais, promessas, esperanças, cunhas, gratidão, planos partilhados de ascensão social ou dependências fictícias com pessoas "legalizadas" inferiores dentro de uma caixa negra e fazer o sistema correr como se nada disso se passasse? Hoje mais do que nunca a lógica é a do soft power, a praga dos que "lideram sem autoridade", qual idílico rizoma dentro do superado Leviathan. Por norma são os piores, por detrás dos que já estão tão confortáveis e que se dão ao luxo de nem sofisticar o seu "brutamontes interno" (mas ainda assim precisando de ocultar assédios sexuais em série numa silva qualquer ou cairia a figura mitográfica dos génios individuais de feitio complicado), ficam os "bons"... que protegem os anteriores... Progressistas, simpáticos, preocupados, pós-humanistas, uma voz terna e calma... Libertários, estetas, poliperspectivistas que entendem todas as posições num debate e sabem gerir o que dizer e (não) fazer consoante o indivíduo ou colectivo à frente.

E depois a mínima ameaça de um qualquer merdoso enganado, manipulado e chantageado firma-se o fim do mundo em cuecas para os "bons" (que afinal são como os anteriores) a tremer pelas varas. Mais mais e mais: manipulação e chantagem... Tenho de ficar por aqui. Enfim, retomando o texto do Graeber, o problema está na conformação com o aburguesamento. E há uma distância entre "suicídio académico" e forçar a corda, uma diferença ética em não querer expor a ruína íntima do próprio assédio sofrido e calar-me ou compactuar perante a tentativa de denúncia de alguém ao lado. 

Mais até, se uma carreira universitária é essa monstruosa "situation of power", fazer parte dela aceitando um papel reprodutivo de exclusão, chantagem e absorção (decidir bolsas, empregos, artigos, comunicações alheias, lucrar com a centralização do trabalho dos outros...) é ser e incorporar esse monstro institucional. Entre ter de ser explorado e um suposto ter de ser que se firma antes num poder ser explorador, não há dúvidas. A coisa já está cheia dos diferentes que vão mudar as coisas por dentro, inclusive daqueles cujo corpo-mártir vem representar um golpe à negação de poder e um compensar da exploração histórica de um qualquer traço identitário em que se inserem. A instituição e o cargo firmam-se a segunda pele, a necessidade fisiológica de autopreservação e legado. Não há mudar dentro, fora ou os interstícios do meio do limbo sem abdicação e/ou sabotagem.

De certo modo, o massivo movimento dos 99% do qual o Graeber foi um elemento - não obstante a importância da prefiguração organizativa horizontal e de acções grupais conforme bloquear a hipoteca de casas  - "prefigura" também o problema. "Riqueza" não se circunscreve à brutal desigualdade financeira nacional/global encabeçada por magnatas ou uma micro-elite político/burocrática conivente. Implica aqueles que detêm os meios, as propriedades e as instituições sob a forma de proprietários ou proprietários temporários a que chamamos representantes. Os júris daquilo, os empregadores de acolá, os intermediários de tudo e mais alguma coisa que decidem e legitimam a subjugação dos demais, os seus empregos subalternos, a sua roupa de acordo com que marca y quer projectar, a sua livre-expressão  esmagada pelo temor da difamação e do ir de vela, o seu baixo salário consoante as impossibilidades micro- ou macro- económicas que não se aplicam à própria "classe média-alta". Isto tudo sobretudo se considerarmos o "prestígio" (palavra cancerígena) atribuído a certas carreiras. São o sustento desta bosta toda (da esquerda à direita): os grandes professores universitários, grandes juízes, grandes advogados, grandes médicos... que, obviamente, desembocam nos grandes políticos (que já eles mesmos incorporam nos cargos de gestão dos seus "pequenos" burgos)... mas esses ainda são os únicos com o mínimo de escrutínio e responsabilização extracorporativistas. 

Uma jovem não-sábia disse-me uma vez que o homo academicus pode sempre bem com disputas de poder entre "catedrismos", a verdadeira ameaça está em quem não o quer disputar mas amputar. É isso que falta fazer... Transcrevo finalmente o referido texto:

Initially, I was to write a critical auto-ethnography of my life in the academy. But I quickly realized that writing critically about the academy is almost impossible. During the 1980s, we all became used to the idea of reflexive anthropology, the effort to probe behind the apparent authority of ethnographic texts to reveal the complex relations of power and domination that went into making them. The result was an outpouring of ethnographic meditations on the politics of fieldwork. But even as a graduate student, it always seemed to me there was something oddly missing here. Ethnographic texts, after all, are not actually written in the field. They are written at universities. Reflexive anthropology, however, almost never had anything to say about the power relations under which these texts were actually composed.

In retrospect, the reason seems simple enough: when one is in the field, all the power is on one side – or at least, could easily be imagined as being so. To meditate on one’s own power is not going to offend anyone (in fact, it’s something of a classic upper-middle-class preoccupation), and even if it does, there’s likely nothing those who are offended can do about it. The moment one returns from the field and begins writing, however, the power relations are reversed. While one is writing his or her dissertation, one is, typically, a penniless graduate student, whose entire career could very possibly be destroyed by one impolitic interaction with a committee member. While one is transforming the dissertation into a book, one is typically an adjunct or untenured Assistant Professor, desperately trying not to step on any powerful toes and land a real permanent job. Any anthropologist in such a situation will, in fact, mostly likely spend many hours developing complex, nuanced, and extremely detailed ethnographic analyses of the power relations this entails, but that critique can never, by defi nition, be published, because anyone who did so would be committing academic suicide.

One can only imagine the fate of, say, a female graduate student who wrote an essay documenting the sexual politics of her department, let alone the sexual overtures of her committee members, or, say, one of working-class background who published a description of the practices of Marxist professors who regularly cite Pierre Bourdieu’s (1993) analyses of the reproduction of class privilege in academic settings, and then in their actual lives act as if Bourdieu had been writing a how-to book instead of a critique. By the time one is a senior faculty member, and thus secure in their position, one might be able to get away with publishing such an analysis. But by then – unless one is reminiscing – one’s very situation of power guarantees the object can no longer be perceived.

On the one hand, my thoughts lead me to the conclusion that it would be safer to admit to being an anarchist than to write an honest auto-ethnography of the academy. On the other hand, I am an anarchist. And it strikes me that the dilemmas that come out of this reality provide an interesting commentary on the academy and its modus operandi, which I present in this chapter. [...]