segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Ganchos

Ganchos
 
Quebrado encontras-me sem faculdade de letras,
Eu nem cardo a olhar para o nada à espera de tudo
Durante vinte Setembros endémicos donde não estou.
Qual Plutão visto da Terra que o ar de vala devastou,
Qual recalque nauseado para sempre e depois mudo.
 
Tu ex machina, só que “não” dá-se mais de mãos dadas à cova,
“Mete-te na minha vida”, mas pulso pulsa fraco de diabo no ombro.
Até demasiadas melhores coincidências te alinharem supernova
E a angústia radical explodir no aleatório voltar das aulas no teu ensombro.

Sístole/diástole e cinco minutos são a epígrafe majestosa desses dias eminente.
Linda coisa frágil, a história e a estética de surgires toda à soleira da porta,
De vires comigo minimal em braços que se acercam num terceiro ente.
Andrógino fomos, corpo meio meu que a expectativa aos deuses exorta
Como num realismo mágico de moléculas desintegradas ao pôr-do-sol.
 
Outubro é quimera de seres o canto receptor de mensagens,
Mera agenda telefónica flores tuas a tocar cravo à beira-rio.
Miragens só, cabeça bonita anti-blues do meu prólogo sombrio.
Dezasseis é ensaiar Manon, última paragem de autocarro sem ti,
Mera migalha cósmica bendito bueiro que em mil minhas levou aqui...
Vi(dr)agens só, princesa defenestradora de todas as janelas fechadas.
 
Chega chega, bailado lancinante exilado no teu anzol,
O apocalipse do meu nada coreografado no escuro cinema,
A nossa valsa láctea projectada na ontologia em dilema:
“Manon, o labor aeróbico da (in)felicidade partilhada num lençol
Ou, por pusilânime blasfémia, negarmo-nos sine qua non?”
 
Nós cegos, andamos aporia pelo nocturno fora
Perante o passeio testemunha de chover confissões para ti.
Embora vai, pela empatia torrencial de plantares os astros,
O meu fantasma lacrimal feito beleza do colírio que cai.
Tão cristalino, que me cravas árvores nos poros já no banco álibi.
 
Meu limoeiro no céu, a cidade despe a alça para nos sentarmos nela
E “era (bom) uma vez” dois bustos estatuados no ombro até à foice.
Mas meu querido parsec, não há Júpiter que nos acrescente a noite,
O nosso filme é uma contagem decrescente ao som do cair das estrelas.
Sopor, vamos que jantar planetas é monumento sem sequela...
 
Tu ave gestual d’erguê-las, o jardim azul rota e pianissimo pelo parque fora.
Larga o Schopenhauer debaixo da cama e leva-me a episódicos lados nenhuns
Lá onde a Lua jaz à tua escada de distância de beijar ou eclipsar agora.
Amanhã... Porquanto o tempo jamais olvida o relógio no nosso quarto.
Dorme bem no teu berço de escolheres o the end que a sizígia implora.
 
Tu gravidade, deixas-me aéreo em qualquer chão que não pisas comigo,
Parto a humanidade ao pensar as maneiras que não existem de te tocar.
Hoje içamos um barco espaço adentro e numa limonada fica o limbo preciso:
Ursa Melhor, dou-te a mão do meu casaco pelos teus ganchos esquecidos
Inventar posso que o bolso lembra, constelações com o cheiro do teu sorriso.
Dormimos bem no colo inexorável de esculpir o futuro que nos cursa...
 
Pantologia, que alguém proclame: "acabou o mundo, começaste tu!"
Mudem a Era Comum, há antes e depois do lar retórico de nem falar
Contigo o banal burocrático do hipermercado tão silente mitologia.
Meu Wagner Total, os gatos que vamos ter na casa em que vamos dizer:
"Teleologia (tu a tornares-me sem fim), amo-te até às larvas que era antes de ti."
 
Um dia, velho na horizontal, vou ver o holograma da noite de Manon
E não supor o que poderíamos ter sido sem fitar telescópio algum.
Bonança, no alto da nossa urna sideral, fomos e somos o mesmo caco.
É tarde, veludo celeste, e sopro-te o abajur para o embalo ancestral
Descansa estrela recíproca, o mundo é os teus ganchos no meu casaco.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Killer Joe - Cão Come Cão

Recensão Crítica















Depois do idêntico e despojado remake de 12 Angry Men (1997), da claustrofobia paranóica de The Birthday Party (1968) e Bug (2006), em Killer Joe (2011), William Friedkin retoma metaforicamente a noção de unidade de espaço. Cinco anos mais tarde, colaborando pela segunda vez com o argumentista Tracy Letts, transcende a sensibilidade teatral com que a deuteragonista casa-caravana é captada: ora através de planos gerais exteriores sugestivos de solidão, ora por via do aprisionamento ao interior de automóveis, asfixia-nos um Texas rural, sujo e inescapável habitado por escarros humanos, beatas olímpicas. A desumanidade é a única geografia da diegese.

A premissa narrativa assente num assassinato em família - epítome de disfuncional - atenta numa apólice de seguro e evoca o paradigmático noir Double Indemnity (1944), mas Friedkin fá-lo num atoleiro sangrento e num humor negro reminiscentes de Tarantino. As personagens, hipérboles do imaginário redneck, são estupidificadas ao ponto de motivarem tanto uma schadenfreude (riso pelo mal alheio) como uma insensibilidade perante espasmos de violência e estupro. 

Chris (Emile Hirsch), antes de se fixar enquanto pêndulo moral, desencadeia toda a acção num efeito dominó em que os cifrões e o falocentrismo são os fins de todo o meio. Só o polícia Joe Cooper (Matthew McConaughey), homicida/psicopata em part-time - o Robert Mitchum de The Night Of The Hunter (1955) com guarda-fato à Terminator -, confere uma gota de ordem no caos. Numa actuação potente, deixa o quase silêncio falar por si, expressando com frases curtas e de rosto fechado uma aura clínica, metódica e letal. Apenas desarma siderado pela falsa marioneta Dottie (Juno Temple), esse anjo que ajuda o inferno a ingeri-lo.

Nervoso e acorrentado como o cão que late na penumbra de uma tempestade nocturna, Killer Joe é a fábula perfeita para acordar antes de adormecer, um conto de imoralidade que, sem freio, conduz as personagens a lado nenhum. Nenhuma aprende senão a errar compulsivamente. 

Deste lado da tela, a obra desembala de modo pornográfico o mesmo tecido social de sempre: a hierarquia do individualismo esfomeado, a mera sobrevivência em que até uma perna de frango é feita ego.   

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Festas De Garagem - Horror Ao Vazio

Análise Do Espectáculo De 25 De Setembro De 2014

TAGV - Coimbra




















Produção: TNDM, Teatro da Garagem | Encenação: Carlos J. Pessoa | Actores: João Marques, Maria João Vicente, Maria Leite, Miguel Mendes, Nuno Nolasco, Nuno Pinheiro | Cenografia: Sérgio Loureiro | Dramaturgia: Maria João Vicente | Figurinos: Sérgio Loureiro | Música: Daniel Cervantes | Texto: Carlos J. Pessoa

Uma porta impregnada num portão e envolvida por um muro rectangular de pedra: a isso se reduziu o cenário realista e minimalista, porém caleidoscópico de Festas De Garagem. O palco à italiana foi recortado como uma mera recta enquadrada num frontispício logo atrás, criando um clima de intimidade com os espectadores. O eco decorrente de algumas falas (sobretudo quando ligado a um cromatismo azulado) evoca uma ideia de isolamento gélido na infinitude do exterior e estorva uma eventual sensação de claustrofobia. A iluminação ténue, proveniente de candeeiros no muro, aponta para um período nocturno. A luz vermelha na abertura transmite a ambiência libidinosa e hedónica de um qualquer red-light district.

Dado que o espectáculo se iniciou às 21h e 30m e que, dramaticamente, jamais se afastou desse cenário e parte do dia, é sugerida uma interpenetração do tempo representado e do tempo da representação (90 minutos). Essa fusão resulta numa percepção de tempo real e consequente verosimilhança. É um factor que pesa a favor da empatia, mas não em absoluto, dado que o autor/encenador Carlos J. Pessoa jogou num registo brechtiano de “quente-frio”, quebrando por diversas vezes o pacto de ilusão.

A peça começou em silêncio, num quase stillness corporal da personagem Virgínia Magrinha - a porteira - que contrastou com o carácter verborreico e histriónico que cedo se impôs, perdurando por toda o espectáculo. Sentada numa cadeira (adereço solista em palco) e a fumar, Virgínia depara-se com a chegada do seu sócio Victor Madeira e um cómico “a falar é que a gente não se entende” desde logo emerge, em concomitância com uma iluminação amarelada (a mais comum ao longo da peça). 

Do outro lado da porta, há a promessa de uma festa de garagem e as personagens, desfasadas, autênticos “adultos adolescentes” vão surgindo. Pretendem entrar, perante a recusa autoritária de Virgínia (e da sua mímica petulante) - passível de analogias com o Anjo do Auto Da Barca Do Inferno. Dessa porta que abre e fecha repetitivamente, emana um vento forte, um ruído industrial, volumoso e sinistro reminiscente do universo cinematográfico de Eraserhead (David Lynch). 

Porta - noção de trânsito entre dois espaços - que é mais protagonista que qualquer uma das personagens. Assume-se como heterotopia, aludindo a outras obras, tempos, lugares e dimensões. É a Alegoria Da Caverna de Platão - pelas sombras corporais no muro de pedra e pelo anseio de entrada num outro mundo -, mas é também a tentação do pecado original no Éden ou a abertura da Caixa de Pandora - espelhadas na projecção e ampliação em vídeo (mecanismo “frio”, de distanciamento crítico, por quebrar a quarta parede) dos rostos agónicos das personagens quando, por fim, entram e no tom satírico-pessimista da peça, que todavia tem flashes de esperança. Remete ainda para o absurdo, expectativa e circularidade de À Espera De Godot (Beckett) através do mencionado persistente “abre e fecha”, só interrompido perto da conclusão. Transparece na porta uma dualidade entre promessa de paraíso e temor do desconhecido (por intermédio de constantes negas da porteira e pelo som e corrente lúgubres).

Mais que tudo, metaforiza o “rectângulo Portugal” e uma crise inerente que transcende os cifrões - sub-partitura cultural que os actores partilham. As personagens são os cidadãos que habitam e não habitam um país igualmente excluído e resignado: um "não-lugar" (Marc Augé). Estão nele numa ausência interior (que se reflecte no exterior), num adolescer procrastinado e numa inércia ruminante. Daí que quase todas sejam expressionistas, “inchadas”, caricaturais. 

Virgínia Magrinha é uma artista falhada (proveniente de mais um reality show), desejosa de fama, cujo anacronismo está patente no vestuário de disco-star. Victor Madeira é um carpinteiro oportunista, brejeiro e de géstica hiperactiva que vive de expedientes (o seu fato-macaco ironiza o pouco que faz e a sua desonestidade). Zica Vaca Gorda é um arquitecto obcecado com Eusébio (elogia-o ao ponto de se tornar crítica; simboliza o apego doentio ao futebol, um vazio intelectual a que os mais escolarizados não escapam e tentam ocultar na fachada de um smoking, por exemplo). Dux Wellington é um praxista orgulhoso das suas mais de duzentas matrículas e do seu alcoolismo (ridicularização de uma memória comunitária, dos universitários que sacralizam e se reduzem a convenções ocas; torna-se sobejamente patético pelo facto de o seu nome se reportar às guerras liberais). 

Todos eles apresentam traços físicos originários de distanciamento - como a gordura excessiva, a comprida peruca e o bigode (maquilhagem) declaradamente falso de Zica. Só o adolescente João Benfeitinho não é fisicamente grotesco, funcionando como pêndulo que torna todos os outros mais credíveis. Na mesma senda, num plano mental, surge Maria Posfácio, com uma entoação eloquente, firme e segura, sendo a única fonte de lucidez e consciencialização directa (materializada na tocha que transporta; o próprio nome, em concordância com a sua entrada tardia, direcciona para o termo “explicação final”). No entanto, a sua face pintada de negro e figurino de igual cor assemelham-na à figura da morte, sugerindo que o espírito crítico pereceu ou está, no mínimo, entorpecido. Estas últimas são duas personagens de equilíbrio, que reforçam o pendor sério, o tormento vital de uma peça tragicómica em que o humor é mais explícito.  

A textualidade contemporânea, de crítica social e com paralelos ao popular teatro de revista está vincada numa tensão visibilidade/invisibilidade na representação. Os corpos em palco entram e saem do seu papel (por vezes de forma impertinente), declarando um enorme à-vontade com o código actor/personagem - deambulam entre um pacto de ilusão e uma irrisão do mesmo. Essa quebra da quarta parede/metateatralidade é concretizada quando Dux Wellington fala sobre “definir os contornos da sua personagem”, quando Zica Vaca Gorda afirma “entrei cedo demais” e se define como uma personagem prematura (correspondeu a um dos momentos mais risíveis para os espectadores), quando Maria Posfácio dirige ao público um “eu aqui, vós aí” ou quando a porteira monologa para a plateia “fazem de conta que não é nada convosco!”.

O texto tem um carácter acumulativo, prolixo e ruidoso, numa corrente de consciência sintomática dos grandes centros urbanos e da era digital; é “coisificado” pela forma não naturalista como é representado. Faz e desfaz: não reconhecemos, por isso, continuidade nas acções. O ritmo dos cinco actos é acelerado, indefinido, pontuado com interlúdios de música electrónica instrumental que começam e terminam de modo abrupto. A esses momentos associam-se coreografias velozes, espalhafatosas, contemporâneas, livres de convenções ou de gestos miméticos e reveladoras de físicos deveras plásticos e resistentes. No campo da iluminação, o vermelho de alterne impõe-se durante os referidos interlúdios.

Os diálogos são exprimidos com paroxismo, passando por temas tão diversos como a felicidade, a emancipação feminina, guerras passadas, o aumento da idade da reforma até à velhice e outros de trivialidade plena - sucedem-se e mesclam-se esquizofrenicamente; as palavras saem como as balas de uma metralhadora. Dada a seriedade de alguns dos temas, é sintomático que inclusive Dux Wellington e Victor Madeira, as personagens mais boçais (o primeiro chega a baixar as calças), conjuguem ao jocoso um uso elaborado e diversificado da língua portuguesa, repleto de jogos de linguagem (mas também de rimas forçadas). Pela natureza farsesca do texto, muitos dos pontos de vista são amorais e disparatados. Uma frase como “falamos um bocadinho demais” explana toda a auto-consciência do autor e das personagens.

No expoente máximo da recepção cómica do público, esteve o leitmotiv/refrão “cocó e xixi, eles são dois amigos no fundo da sanita”. Momentos escatológicos que, em detrimento do escândalo, procuram mundanizar o texto. Além disso, a peça serve-se da música para reanimar a audiência de perífrases textuais - algo em que teve êxito neste espectáculo. Os criadores reconhecem-nas, visto que pospõem ao adormecimento por tédio de Victor Madeira um episódio musical.

Noutro espectro, o momento ecuménico perto do fim em que todas as personagens se juntam e cantam “oh oh oh” numa comoção conjunta (sobre uma composição instrumental de atmosfera inspiradora) corresponde a uma das ocorrências de maior poder empático. É uma cena etérea e sonhadora, substancializada no lançamento de confetti em palco, e que condensa a essência de Festas De Garagem (algo oculta pelo primeiro plano concedido à feição cómica): a angústia existencial e a busca de uma identidade para a poder atenuar. Cada personagem expressa um premente e omnipotente “sentir tudo de todas as maneiras”, um caos interno tão promissor como desolador. A adolescência é (também ela) abordada enquanto aproximação a um "não-lugar", um período formativo e de pluralidade: um processo. Por ser de identificação universal, esse instante é de elevado potencial catártico. 

A porta é, nessa perspectiva ontológica, cósmica como um buraco negro; a expectativa de um desconhecido evento de divertimento nocturno “suga” toda a atenção das personagens (é lhes um hipotético deus ex machina). Há um vazio (irónico) a preencher-lhes a mente. No clímax do “oh oh oh” colectivo, encontram esse ponto de conexão - obliteram as suas divergências e a solidão em conjunto por via de um objectivo em comum - para a intersubjectividade, tal como aí se sela a unidade conceptual de uma peça não teleológica, assente em quadros de sequência narrativa residual. Aos adolescentes e aos jovens adultos (o público alvo de Festas De Garagem) lança-se um repto de indagação, apela-se ao seu papel de alguma crença numa população tomada pela descrença. 

O espectáculo findou com um êxtase sensorial de luzes estroboscópicas acopladas com uma intensa paisagem sonora electrónica. Em simultâneo, as personagens abandonam definitivamente o seu papel, despindo-se até ficarem de roupa interior. Uma seminudez que acarreta uma ampliação do figurino, pois, numa lógica cultural e social, os corpos mais nus são os mais vestidos. À pulsão voyeurística de os ver opõe-se a dificuldade de uma perceptibilidade intermitente, num epílogo de manifestação da materialidade espectacular. É uma última convocação do senso crítico através do estranhamento.