Partindo
dos conceitos de remediação, imediacia e hipermediacia apresentados por Jay
David Bolter e Richard Grusin (Remediation:
Understanding New Media; 1999), a fita cinematográfica Adaptation. (realização de Spike Jonze; estreada em 2002) pode,
pelas suas idiossincrasias, ser objecto de uma análise exemplificativa da
teoria sugerida pelos dois autores.
É
no inusitado argumento de Charlie Kaufman que reside o ponto de atracção do
filme enquanto amostra prática das ideias mencionadas. A obra consiste numa
adaptação do livro não ficcional The
Orchid Thief (Susan Orlean; 1998), porém Adaptation. subverte as expectativas e assume um registo satírico.
A
premissa é a seguinte: Charlie Kaufman (interpretado por Nicolas Cage)
encontra-se em estúdio, na filmagem do seu primeiro filme (Being John Malkovich) e é contratado para adaptar a obra de Susan Orlean
(Meryl Streep). Adaptation. centra-se
nas dificuldades de um autodepreciativo, deprimido e sociofóbico Charlie para
tecer o argumento. Vítima de um bloqueio criativo e convencido de que o livro é
inadaptável à sétima arte, o auxílio provém do irmão gémeo Donald (Nicolas
Cage) com o qual partilha a habitação. Na realidade, existe a curiosidade desse
ente inventado (alter ego) ter sido co-creditado com a escrita do argumento e
de se ter tornado a primeira pessoa fictícia a ser nomeada para um Academy Award.
Charlie
pretende uma adaptação fiel que evite cair nos clichés amorosos/sexuais ou de
acção/violência com o intuito de conferir emoção e espectacularidade, apesar da
falta de conteúdo dramático em The Orchid
Thief. Em simultâneo, o seu irmão decide seguir as suas pisadas e escreve
um thriller psicológico. Apesar de aderir às convenções e previsibilidades do
género, vende o argumento por números elevados. Num alçapão de angústia e
insegurança, Charlie inicia, quase acidentalmente, a escrita de um argumento
semi-autobiográfico, repleto de auto-referências.
Num
outro fio de narrativa, ao qual acedemos de forma descontínua, captamos em
analepses ou em paralelo (com a contenda de Charlie) o cerne de The Orchid Thief. Uma jornalista do The New
Yorker - Susan Orlean - investiga a história verídica de John Laroche (Chris
Cooper), um coleccionador obcecado por orquídeas raras existentes na Florida,
com a finalidade de escrever um livro sobre o assunto. No transcurso de Adaptation., as duas linhas acabarão por
colidir numa cadeia de causa-efeito.
Em
parte, é devido à originalidade e estranhamento do argumento que o filme pende
para a hipermediacia, no entanto não deixa de haver uma relação dialéctica e
tensa de imediacia. Ademais, o seu teor pós-moderno torna a experiência da obra
numa construção do espectador (neste caso seguimos uma edificação de uma outra,
diga-se) e fomenta o seu interesse no contexto da teoria de Bolter e Grusin.
Pegando em trechos de Adaptation., é
possível distinguir exemplos claros da tripla lógica.
As
primeiras imagens do filme (metalinguísticas) são do set de Being John Malkovich e aí observamos o
próprio John Malkovich como actor que faz de si mesmo. Desde logo, o resultado
é uma obliteração da quarta parede. Algo idêntico sucede quando Charlie Kaufman
(encarnado por Nicolas Cage), à mesa num restaurante, fala do seu argumento no
trabalho acima designado (referência hipertextual). Ainda nessa cena, vemos o
livro The Orchid Thief, ou seja, a
fonte de adaptação tem presença física no filme que a ela se dedica.
A
irónica narrativa em estilhaços temporais (que passam inclusive pela Califórnia
de há 4 mil milhões de anos atrás), espaciais, de personagens e entre ficção e
realidade tende a frustrar, a impedir o investimento emocional de quem
acompanha Adaptation.. Todos estes
aspectos beneficiam a hipermediacia, a opacidade e revelação do meio.
No
espectro oposto, nos primeiros minutos, a atenção é focada em Charlie Kaufman
de modo a apresentar os seus objectivos e os respectivos obstáculos. Esta
abordagem facilita uma aproximação à personagem, assemelha-a a um avatar. Somos
capazes de sentir e pensar com ela, é a nossa projecção num corpo estrangeiro.
A azáfama e o turbilhão mental de Charlie passam para a estrutura do filme e
para a nossa compreensão, o que de certa forma atenua o favorecimento da
hipermediacia por consequência dos assíduos saltos multifacetados.
Na
cena de perseguição rodoviária (que surge como sátira a Hollywood), as
performances, o som, a iluminação e a aceleração da trama são orientadas para
criar suspense. Tal procedimento promove a transparência e invisibilidade do
meio, mergulhando-nos nele. O espectador espera este tipo de clímax, é uma
abordagem que se automatizou e se naturalizou dada a sua constante recorrência.
Daí que seja pouco provável ponderarmos de imediato nos stunts por detrás do
trabalho final, por exemplo. Estamos embrenhados nos acontecimentos
provenientes do ecrã. Todavia, as intermitências do enredo de Adaptation. afastam-nos do impacto
emocional que o recurso à violência, sexo ou uso de drogas poderia significar
se estivéssemos diante de uma obra mais convencional. O estranhamento repulsa
uma comoção duradoura.
Em
Fight Club (realizado por David
Fincher; 1999) - adaptação homónima da novela (Chuck Palahniuk; 1996) - a
abordagem é feita no sentido de ser relativamente leal à história, aos cenários
e personagens da sua fonte. Mais do que isso, não há dentro do filme (se
excluirmos os créditos) qualquer menção ao facto de ser uma adaptação. É um
mero modelo de remediação entre tantos outros que visam manter a ilusão de
imediacia. Em Adaptation. a opção é
por um rumo raro: um revelar da fonte e um acentuar das diferenças. Não só o
conteúdo é copiado, mas também o próprio meio original é apropriado e citado,
rompendo com a imersão. Além disso, várias ocorrências são criadas face ao
livro - o ataque de um jacaré que serve de deus ex machina é uma delas.
Reagindo ao filme, o meio anterior foi transformado (ecologia dos média). As
edições mais recentes de The Orchid Thief
contêm na capa uma sinalização para o facto de ter inspirado Adaptation..
No
fundo, o filme é uma adaptação de si mesmo. Os clichés a que Charlie alude e
pretende evitar vão ser um mote autoconsciente para dissolver a heterogeneidade
da narrativa, “hollywoodizar” os acontecimentos e transmitir uma sensação de
fechamento. Esses lugares-comuns culminam incorporados na vida do autor e no argumento que escreve, em
concomitância com uma realidade e uma ficção que se interseccionam numa só
frase, num híbrido definitivo.
Adaptação
é a tendência dos organismos para se transmutarem tendo em vista a sua vantagem
biológica. Tal como o ser humano, o seu comportamento e as suas perspectivas.
Tal como a história dos média. Um devir incessante, um futuro que não anula o
passado. Uma apropriação.