quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Como Um Estranho A Olhar Para Mim Sem Me Ver #2

Nalguns dias preciso desesperado de oxigénio. Sinto-me tão feito, rarefeito, desfeito. Honestamente mal tenho palavras. E não prestam. Nunca chegam e nunca acabam a totalizar este monstro. Detesto como isto sabe no corpo: o velho nó na garganta, o peito a aproximar-se dela em fogachos de calor e ardor, o gosto seco na boca. Alguma coisa prestes a rebentar, mas nunca rebenta. A sensação de impotência, de impossibilidade, de inexorabilidade. Como quando tinha 9 anos e percebi mas percebi a sério que um dia vamos todos morrer: perder o apetite, perder a ideia que os meus pais eram super-heróis, perder o conto de fadas que o que acontece a toda a gente não te vai acontecer a ti também. Estar no banco de trás do carro de regresso a casa após compras e parecer que comprei todo o escuro da vida para todo o sempre. Absoluto niilismo. Como se fosse eu o céu nocturno que via daquela vidraça. Um escarro disforme e dissoluto e abaixo os dentes aguçados da Serra da Estrela, com raízes vindas do céu-breu. O carro inferior mil metros e meio, plano numa recta rumo a lado nenhum. Toda a gente vai lá viver. Até quem lá vive antes de lá viver. 

Eventualmente, adaptas-te, sobrevives. "Ainda és tão novo", introjectas bem. Aprendes a viver vicário em séries, filmes e videojogos de conforto. Entre bullying escolar e esquemas nojentos por popularidade de clones do que um adolescente deve ser e fazer, aprendes. Entre estudar para os testes, absorver a lógica do teste e do avaliado e reconhecer (o medo) da figura de autoridade "professor", sonhas. Entre efectivamente aprenderes sem perceber que estás efectivamente e sobretudo a ser domesticado para um dia servires e produzires a grandeza de alguém... Nem sonhas. Que nada do que saibas fazer importa enquanto contributo e expressão comunitária directa. Boa sorte em encontrar a "qualidade" e a "subsistência" fora da correspondência à intermediação institucional, vantajosa e glutónica... de um patrão, de um director, de um presidente, de um coordenador de curso e demais pestes. Um colectivo retórico. Porque melhor mesmo que "igualdade" é a ficção representativa de um "presidente da comissão para a igualdade social". E se parecer mal, anacrónico o suficiente, muda-lhe o género ou chama-lhe só mesmo "comissão para a igualdade social" dos trinta oligarcas sem líder individual. Vão lutar. Lutar por milénios fora por mais milénios da mesma merda. Reduzirem-te a isso: merda. Merda fértil taxidermia só casino dos poucos. Que existem.

Tens 16 e, verdade seja dita, não és flor que se cheire. Mas está a tua frente. Está à tua frente, como o idiota do director da tua escola secundária. Com os seus grandes discursos sobre os melhores resultados nos exames nacionais no concelho ao mesmo tempo que abafa assaltos e tentativas de assalto, violência, condições miseráveis nos balneários ou equipamentos de educação física. Só tens nojo. Só queres distância. Aquilo não é vida. Vês um pouco o mesmo filme todos os dias todas as noites todos os telejornais todos os partidos políticos. Salvar a face. Porque os pais protegem, podes esquecer; porque a escola entorpece, esqueces. Queres-te safar. Pensar em ti, pensar no futuro. Percebes essa parte, não computas as tácticas, a instrumentalização, pisar quem der para pisar até fundares as escadas privilegiadas da tua própria ascensão. Prontas a inaugurar com a fita vermelha do sangue dos outros. Corta. Corta bem. E anota bem. Mais que tudo, sonhas. Sonhas durante o dia, no duplo ideal do que podia estar a acontecer. A solidão que sentes, as raparigas de que gostas invisivelmente e os amigos que não tens. Vais vê-los e ouvi-los em todos os fones e filmes de todos os metaversos possíveis. No intervalo das aulas, na vidraça do autocarro, no teu quarto-encubadora. É. Não sou menos um clone mediático adolescente dum beijo na chuva, uma cabana na árvore, contos de terror numa fogueira circular dentro do Verão e da floresta. Brilha tudo tão claro! "Vês demasiados filmes!" Vi demasiados filmes. Mas não viste o maior deles todos, uns trastes bem pensantes em trajes a escrever a ficção da realidade diária. Enquanto escreves no diário, os cadernos do rapaz impossível. Aquele Estado ecuménico, das tuas canções preferidas e lá dentro... As tuas pessoas preferidas. Chora fácil chora frágil, a angústia passional de um miúdo numa sexta-feira à noite. No quarto comigo, o cenário é planetário. Cantamos juntos: entre os anéis de Saturno, as memórias bailam com as expectativas defronte. Enfim, sentires-te importante na tua avassaladora diminuição. És de ti mesmo.

Mas olha que não viste mesmo. "Uma Chapada da Realidade", um clássico cinematográfico produzido por privilegiados que te incluem discursivamente entre os privilegiados para denegar a sua agência absorcionista numa estrutura que se confunde com a sua própria pele. Aumentada. Bilhetes à venda nos lugares de trabalho habituais. Já em exibição em gabinetes perto de si.

A pior parte? A pior parte é ver a psiquiatrização da opressão surtir efeito. Quando um monstro te prostra, chantageia, censura e ameaça a tua subsistência e não podes denunciar, ele entra dentro de ti. Introjectas bem. Introjecto bem. Os actos, os estratagemas, os compinchas & compactuantes, tornas-te os comprimidos que ele te pergunta se andas a tomar. À luz do gás pensas, "então ele tem razão", "então eu sou louco". E todas as instituições vão tão adorar dizer: "é a habitual crise de doutoramento a meio do percurso"; "é comum um doutorando ter problemas de saúde mental ao desenvolver a sua tese, face à pressão envolvida na escrita da mesma".

Engole mil "todos passamos por isso", mil "misérias em conjunto"! Excita-te com isso. "Sê humilde nas tuas denúncias perante um mártir sempre impossível do alguém que sofreu mais e a sério". "Sai da tua bolha" (de comeres todos os dias a solidão e incredulidade normalizantes de hierarquias sobre as quais produzimos extraordinários raciocínios abstractos sob a forma de artigos e comunicações académicas cuja existência controlamos oligarquicamente via peer review que pode sentenciar o teu trabalho como não-trabalho). Ousa levantar a cabeça, ripostar e vê percebe todas as instâncias canais institucionais comunicativos como uma extensão de quem detém os meios. Prova desprezo, a sobremesa é silêncio. Processos de auto-avaliação com alunos escolhidos a dedo, branqueamento de assédio sexual, inflação e fraudes nas notas de seminários, usar redes internacionais de endogamia para publicar sem endogamia, mudar de opinião consoante a pessoa que se tem à frente, falsificação de identidade para te tentarem acusar de escrever um texto que não escreveste, perguntarem-te quem gostavas de ter no júri da prova, ser roubado num prémio de mérito importante para quem é esmagado de todos os ângulos, ser proibido de usar um powerpoint enquanto método de apresentação por um "grande defensor da liberdade de métodos"... Já não ter paciência para enumerar tudo. Mas vai chegar o dia. Vai. 

Como eu vou vendo bem, afinal por de trás da enorme sapiência científica em área x. Uma pessoa com a sensibilidade e a capacidade de reflexão social de um troglodita. Uma no meio de doutos doutores trogloditas afins. A ilusão de progresso. Puxa à esquerda, puxa à direita institucionais: qual barra de volume da treta do meu pc, "quanta desigualdade da qual o meu jugo se firma já inquestionável é aceitável"?. E aqui bem na academia, o melhor (para eles) de dois mundos. O prestígio, a reputação, todas essas palavras de merda dignas de uma república monárquica para os definir. Mas sem escrutínio público. Rostos desconhecidos reserva. Inquestionados e bajulados. "Não é só aqui". "É mesmo assim, o conhecimento científico deve ser abstracto, o calunioso e o anedótico não têm lugar na universidade"."É normal, diferentes concepções de verdades entram na contenda pela sua hegemonia discursiva, senda a sua só mais uma". "Não está aberto à pluralidade" monolítica que o subjuga

A pior parte? A pior parte é só escrever isto aos 28 anos. Escrever como quem diz fazer sentido da repulsa institucional que já sentia aos 16. Racionalizar a percepção da injustiça. E o quanto da minha própria sempiterna ansiedade social brota da invenção das "figuras de autoridade" enquanto intimidação. Porque, "parece", não há conhecimento técnico sem o seu direito a ganhar mais e a controlar sempre: a sub-vida dos outros. Mas mas mas, o elitismo nunca foi status quo de nada e, bolas, já estou a ser anti-intelectual. Como o que diz John Rawls: "as desigualdades sociais e económicas devem estar dispostas de modo que ambas são: (a) para o maior benefício dos menos favorecidos, consistente com o princípio de economias justas e (b) atreladas a cargos e posições abertos a todos em condições de justa igualdade de oportunidades". Santa benevolência! Venha providência! Não só beneficiar com a desinteressada superioridade dos outros. Também poder sonhar ser poder! Falta só mesmo: criar o Éden da igualdade de oportunidades para poder legitimar a desigualdade daí decorrente: pela área laboral ou de estudo, pelo mérito do networking, pela nobreza dos grandes estadistas de servir a res publica.

Se uma lei da selva cai na cidade e todos estão perto para ouvir ou ver, será que a lei da selva caiu mesmo? Gostava de ter sabido antes... o bullying escolar, a hipocrisia e os concursos de popularidade adolescente... A inevitável conexão crescente entre as grades da escola e as grades do mundo laboral-institucional. A mesma sensação elevada ao cubo da impotência, impossibilidade e inexorabilidade. Detesto como isto sabe no corpo: o velho nó na garganta, o peito a aproximar-se dela em fogachos de calor e ardor, o gosto seco na boca. Alguma coisa prestes a rebentar, mas nunca rebenta. Como quando aos 9 captei que um dia vamos todos morrer. Agora uma perplexidade embebida de raiva: não tinha de ser assim!; toda a gente vê mas ninguém faz nada. Jogos nojentos de popularidade. A versão passada de clones do que um adolescente deve ser e fazer. Tal e qual um dia uns poucos da minha geração vão estar lá em peso. Não, não há diferença moral entre um "povo" e uma "elite", há correspondência perversa na mera existência de elite. Quando se está na posição em que estou na universidade e quando vejo colegas a calarem-se sistematicamente perante abusos de professores, é fácil ver a reprodução social. Entre a gratidão e a indiferença, passam progressivamente para a categoria da perversidade inerente ao cargo. 

Gostava de ter sido alertado, de ter sido educado para este status quo. Mas, pensando bem, talvez isso significasse a inexistência hegemónica e normalizante do que vivo agora. Não o estaria a viver ou, na pior das hipóteses, teria crescido, junto com muitos outros, com os leucócitos necessários, com a agressividade precisa para deitar abaixo uma lógica institucional que se auto-intitula (LOL) como garante da liberdade e da igualdade. Sem dissonância cognitiva, teria percebido aos 16 que o tal filme supostamente chamado "Uma Chapada da Realidade" se designava afinal "Chocolatinhos da Ideologia". Teria computado a narrativa dos constrangimentos do cenário macroeconómico só aplicada a quem está na merda; a lógica da manifestação ritualizada e amansada por feriados ou dias históricos; a cisão dual entre protesto pacífico e violento como se só existisse segurar um cartaz pela rua vs. agredir alguém e incendiar; a figura jurídica da difamação enquanto protectora de gente poderosa num sistema judicial reprodutor da opressão; o sufrágio universal ora anulado por cadeias de nomeações governativas e listas partidárias ora instrumentalizado para legitimar, por exemplo, a exploração laboral enquanto válida escolha social; a pilha de documentação privada e reuniões à porta fechada por parte de órgãos que se dizem representativos; as possibilidades laborais enquanto algo que um conjunto de gestores superiores permite a quem quer entrar em vez de toda a sociedade se reorganizar para os acomodar, sem porteiros para lá de um necessário período de formação reduzido no tempo; a universidade como aristocracia do século XXI.

Quando a porta é fechada, a sala é de alguém. E ser esse alguém é ser tempo, é ser espaço, é ser o corpo dentro de pessoas como eu, agora. Tenho pontos na boca, mas estou morto por falar. Com nomes e caras, com detalhes, publicamente. Cansei-me para a vida de pedir, pedinchar. Chama-se ser roubado. Acordar todos os dias, experienciar todos os dias com actos, pessoas e estruturas na cabeça, no hálito respiratório metálico e carcerário. Já passaram anos desde que tudo isto rebentou e algo se foi que não vejo como poderá um dia voltar. Detesto sentir-me desimportante para mim mesmo. Sem ser adoecer e ter os órgãos a tornarem-se simulacros da percepção da morte (ou vê-lo acontecer a alguém querido) - como quando tinha 9 anos mas agora com decadência e dor palpáveis -, não há pior. Não há pior e, contudo, tem tudo para piorar quando deixar de ter bolsa e acabar o curso. A pior parte? A pior parte é mesmo ver a psiquiatrização da opressão surtir efeito. Passar a ter nada mais que alguns dias menos maus, como se tivesses uma horrível doença crónica. É isso que são algumas pessoas, uma doença que coloniza uma existência já vexada ao sofrimento físico. 

Eu sou fraco, eu sou frágil, eu sou a fragilidade. Mas como o cão maltratado que a certa altura morde o dono, comecei a ganhar as minhas defesas ao longo do último ano. É demasiado fácil deitar-me ainda mais abaixo, tudo é uma réplica em cadeia de sincronicidade com o trauma que se vai acumulando atrás, mas até a isso acabas por te habituar. Encho-me de angústia geológica. A raiva, a repulsa e o desejo de justiça não são menores nem antitéticos à tristeza, ao vazio e ao abatimento. As coisas más continuam a suceder-se e eu continuo a piorar para de vez em quando melhorar um bocadinho. Nada mais. Às vezes repito a mim mesmo dezenas de vezes que vão pagar por tudo com a devida exposição pública - TODOS ELES. Vão ser expostos vão ser expostos vão ser expostos vão ser expostos! Nem que tenha de me arruinar ainda mais! Vou tanto comer o seu espaço e tempo quanto este impulso adjacente e demolidor pela autodestruição. Às vezes adoro-o doentiamente! Para já, tenho muito trabalho pela frente. E, agora mesmo, mais uns dias particularmente maus e não-produtivos pela frente. A escumalha deles está forte nas veias, sinto-me demasiado assim para estruturar o meu acto de haraquiri. Apenas depois, aí, poderei ter uma réstia de vislumbre de hipótese de talvez não ter este gosto metálico omnipresente no dia-a-dia.