Uma
porta abre outras mil. O fonógrafo, instrumento introduzido em 1877 por Thomas
Edison, veio permitir a gravação e reprodução de som, o que por sua vez viria a
despoletar um caleidoscópio de modificações sociais. À semelhança de outros
dispositivos de registo e inscrição automática seus contemporâneos, representou
o encontro com uma estrada que lográmos abordar por estarem reunidos certos
pré-requisitos de conhecimento. Nela a humanidade conduz com os faróis ligados
perante um pano de fundo de nevoeiro e somente assim o horizonte, as
possibilidades aumentam, instigadas pelo deslocamento na incerteza, na
curiosidade e sede de progresso. Nesses parâmetros, podemos pensar a era
digital, o “agora” como a simples consequência de uma viagem iniciada, uma nova
via que construímos em movimento e para onde pudemos cortar.
Em
termos de reacção inicial à invenção do fonógrafo (a uma voz desprovida de
corpo), é de crer que tenha sido pautada pela surpresa, tendo em conta a
relativa lentidão do século XIX, onde (deduzo) o desenvolvimento tecnológico
seria considerado um acontecimento mais do que uma inevitabilidade trivial.
É possível que ninguém/poucos se tenha(m) apercebido do seu imenso potencial de
versatilidade e dos modos em que poderia incidir na psique humana, aquando do
seu surgimento. Enquanto mecanismo duplo (gravação e audição) alcançou uma
dimensão de humanização e criou uma ideia personificada de interactividade. Viabilizámos
a estranheza de ouvir a nossa voz fora de nós mesmos, conforme um emissor
forasteiro. O registo sonoro desvinculou-se das noções de tempo e espaço e até
a morte se tornou passível de transgressão. Etnograficamente, alguns costumes e
idiossincrasias de povos isolados sobreviveram devido ao seu registo, havendo
então um contributo não só para o multiculturalismo, mas também para mesclas,
assimilações e conexão das diferenças e particularidades (salad bowl).
A
utilização do fonógrafo, por ser um poderoso meio de comunicação, incluiu ainda
fins políticos, publicitários, profissionais, educativos, informativos ou de
entretenimento. Desempenhou o seu papel parcelar no erguer de uma sociedade de
consumo e movida pelo pagamento a crédito. Pense-se inclusive na obsolescência
do dispositivo, pois de forma constante surgiram outros, descendentes, em que a
fidelidade do som era superior e a portabilidade acentuada.
A
música foi alvo de uma autêntica revolução, ganhando tracção uma ideia de
indústria. Tal como o fonógrafo se assumiu uma ferramenta de presença
quotidiana, o mesmo se passou a verificar com essa prática artística. Deixou de
se resumir a uma experiência in loco
de salas de concerto ou cerimónias religiosas, democratizou-se o acesso. No
conforto da habitação, no local de trabalho ou num meio de transporte, estar à
disposição converte-se numa escolha. Já não era em exclusivo um hábito social, possibilita-se
a audição solitária. Desvanece a ditadura corporal do aqui e agora.
Nesse
contexto de ”escrita do som”, emerge um aspecto muito específico e relevante da
música: o crescente carácter intimista. Imortal, transcendente ao momento e
estando à disposição para reproduções repetidas, infiltra-se dentro de nós.
Talvez por ser tão abstracta, tem a capacidade de nos afectar com intensidade,
já que estimula a imaginação dos sentidos e a reconhecemos no inconsciente como
criação humana, representante da nossa condição. Seguindo essa lógica, aquela
canção algo adormecida (quanto mais estiver, maior será o efeito) que tantas
vezes escutámos na infância, na adolescência ou num período concreto delas, ao
ser reanimada na memória por nova audição, irá catalisar o contacto com filmes
mentais de memórias autobiográficas e da ambiência envolvente. Por experiência
própria, a hipótese que coloco é que apenas uma fragrância é comparável no que
diz respeito a implicações nostálgicas com tamanho peso.
Quase
todos estamos condenados a uma existência funcional, fatigante e de rotinas,
das nove às cinco, dia após dia, ano após ano, vida após vida… Escasseia o tempo (e a
energia) para processar os episódios. Perpetuada, a música oferece um
contraponto: a constituição de bandas sonoras pessoais. Em reminiscência,
associamos canções com seres humanos, lugares e sentimentos de outrora e
fazemo-lo num grau expansivo. Distanciados e com este impulsionador analéptico,
somos convidados a interpretações múltiplas e omnipotentes de ocorrências
passadas, a compreender o porquê de as termos percepcionado de determinado
ângulo em detrimento de um distinto. Do topo da montanha sofremos, num estado
de calafrios, os terramotos existenciais numa magnitude mais elevada.
Se
é verdade que o facto de sentirmos com violência vale intrinsecamente, também o
é que a reprodutibilidade ínfima da música tem por encadeamento uma catarse de
escala universal. Sendo seres de esconderijos internos e só partilhando os
recônditos com uma exclusividade de indivíduos, a música, a expressão do outro
é um telescópio para a sua essência e, em reflexo, para a do eu, para a da
humanidade.
Qual
o valor do (suposto) saber histórico (e qual a sua verosimilhança) se não for
além de um mero conjunto de dados e fecharmos a razão à chave num edifício
gélido (o mundo exterior da sociedade) ao qual não é permitido o ingresso do
seu único descodificador, a emoção? Como equiparar os erros a um método de
aprendizagem se cometemos de antemão e em insistência o equívoco primário de
querer resumir o indivíduo à racionalidade? Não será, aliás, a memória
emocional o máximo recurso incendiário de nos lembrarmos de não esquecer os
lapsos?