quarta-feira, 20 de março de 2024

Seda & Sedado, A Maneira Que Quero Estar

"Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente." - Paul Auster

Já vi vi os dois lados agora: a expectativa e a retrospectiva. Se tiveres sorte, chega a existir alguma coisa pelo meio. Uma por uma - com uma excepção - toda a gente te vai desiludir e vai haver menos gente para te desiludir porque não vai haver gente. Quando conseguires e eu consegui o feito de desiludir primeiro quem nunca me desiludiu. Arruína o cérebro mais bonito da história da humanidade com a ruína do teu.

Saca-lhe a beleza da visão, saca-lhe o fácil sorriso automático pelo qual te encantaste. Espalha o cancro que és. Lentamente aceitas que tens de te afastar de quem se afastou porque te afastaste primeiro e que a ordem dos turnos importa zero. Deixá-la reexistir sem o cancro. Até que... portanto, uma por uma, não vai haver gente. Contigo incluído. Ninguém te vai desiludir mais do que tu a ti mesmo. A tua própria vida. Sem mãos, agência, desagente. Excepto o teu estúpido cérebro. Porque de volta ao básico, à solidão da tua configuração padrão, aí vem mais uma golfada de incomunicabilidade. E estes, demasiados acontecimentos na pele, já não são os teus tempos. Fardo, gasto, resignas-te a ver tudo acontecer por um televisor.

Tentas pôr uma cara de apatia por cima da cara de horror. Sempre foste um pro nisso. Antítese da asquerosa invencibilidade de rei do recreio, tornas-te tão pequeno dentro de ti com um mundo tão grande engolido durante anos. Decrescer por crescer. Minguar até seres um verme. Um por um, os momentos, o mundo, chau. Aqui vamos nós outra vez, a tentar fingir que uma pessoa importante nunca existiu… ou pelo menos a sua importância. E aí encontro o meu slogan existencial: seda & sedado, a maneira que quero estar. Como uma almofada, à deriva, suavemente a sonhar. Aquele relance antes e depois do sono, a melhor parte do dia-a-dia. Eis o princípio a seguir: minimizar o sofrimento, o hedonismo possível. Atarefares-te tanto de trabalho e hobbies que passas o dia sem pensar, aterras no sono sem pesar. É esse o sonho. Agora. Fazer montes de coisas para não enlouquecer. O sonho dos tristes e quebrados. O meu. Sonho tanto com ele, a forma sem conteúdo! Estado de fluxo versão drone humano. Passar pelos movimentos, autómato sem dor ou sofrimento, o que (já não) tens agora nem interessa.

Ou talvez, pelo contrário, só importando isso. Quando tão sovado por tudo começas a olhar para qualquer ser humano, para o espelho e já não consegues ver mais que a intermitência de reptilianos a comerem-se e destruírem-se uns aos outros enquanto fingem que não…  seda & sedado, a maneira que quero estar. Estar tão morto e indiferente que recrio a ficção de esperança por não pensar nela, na sua perda. Afinal de contas, não foi por isso que ela pôde existir em miúdo? Por doce ignorância?

O problema é… aquele relance depois do sono, antes da realidade se instalar… passar. A mente a refocar-se nos inputs sensórios à volta dela. Angústia e às cabazadas, demasiada bagagem, uma derrocada e comer pedras. Puxar a cara da almofada para a memória de ti na cama onde devias estar. O início repentino e um fim como se nunca tivesse havido nada. Como a vida. Começar a desmanchar-me todo por dentro, dissoluto, ansioso, deprimido. A perda. As nossas fotos, os nossos vídeos, a nossa rotina. Pensamentos flashes de demasiado. À minha volta sob a forma da sua falta. Luto. Sentir isto a morrer e a morrer e a morrer sem fim. Sem uma mensagem mágica, uma voz surreal que de facto voltasse tudo ao que era. Mas não conseguir esconder os meus pensamentos de mim, odiar-me no revisionismo, à procura de sinais de quando e onde começou a falhar, se calhar desde o início e nunca tudo foi assim tão especial. Odiar-me a mim mesmo a conspurcar essa memória do mais bonito que me aconteceu, um sentir seda sem estar sedado, a coisa mais próxima do paraíso, as expectativas que sempre sonhei. Ao mesmo tempo, nada me dar mais náuseas que aquela ideia feita tão terapeuticamente certa de esquecer ao aprender a ver o que de bom aconteceu. Ainda assim, ainda que nem sempre, tiveste o melhor de mim, e o melhor que eu dei a alguém. Além de que eu juro, egoísmos mesquinhos de reptiliano à parte, só queria que agora voltasses a ficar bem, mesmo que longe.

Mas últimos meses com vários dias a bater no fundo, sei agora pela última e derradeira vez que não existe para sempre nem mortes fora. Não pode existir o que eu acreditava existir-me aqui e agora… E depois tento fechar este texto, mas lembro-me que este ano vou comer nêsperas sem ti. As merdas mais simples, mais mundanas, mais belas, mais cruas a atravessarem-me a dor de consciência. Dói-me onde não existo, preso na sala de espera da vida. Uma maldição à espera de acabar. A envelhecer. Velho e decrépito como um regresso antecipado à terra natal.

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