quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Sintowave

E de chofre ela invade, 
a cidade, ser novo nela,
A inexplicável noite em néons 
como uma criança 
de meia-idade a encharcar-se na tela
do táxi narcoléptico que passa
pelo estuplime de rosa choca com
azul fluorescente, ciano coalescente.
Mas santa saturação, o iluminismo glossa
embriagado de canções pop, um nocturno
que nunca vem só. São 
mil sóis electrónicos
a derreterem o tempo nos letreiros até
pingarem cores no céu do asfalto. 

E de enxofre a manhã acorda
em duas estrelas disfuncionais
uma à procura da outra
sem saber,
em janelas, varandas de quartos de hotel
pelo vidro, onde crises existenciais se
reflectem até embaterem no corte
vertical de arranha-céus em colisão
no horizonte e
voltarem sempre ao ponto de partida
como espelhos de
vidas materialmente resolvidas, mas
o ennui, as neuroses de domingo?   
Respondem-lhes 
silhuetas de smog e dias nublados
num lugar desbotado onde não podem
traduzir japonês para inglês
nem inglês para alienês. 

Essa a rima de duas almas, o espaço
tão só que ocupam 
logo onde elas mais abundam.
Melancolias nativamente estrangeiras,
lassos à espera de laços,
desesperos quietos até que
a noite retoma a ficha
elec lec lectrificada e
tutti-frutti do acaso,
elevadores, lobbies, bares de hotel,
o mesmo
destino 
de embates, encontros aleatórios. 
Pouca conversa fiada, 
muita versa a inebriada
água de lágrimas de vidro em explosão.
Combustão melancólica, isso basta,
para dilemas do ouriço prontamente abandonados e

seres abissais descerem para as alturas de
paraísos artificiais, passadeiras cruzadas
que dão para todo o lado, porque
ela é Shibuya, ele é sua
onde a distracção é uma obra prima
a entrar e sair em todo o alado
pelas portas da percepção,
giratórias 
entre carros ou pés flanares
nos quais a rua é sempre 
um lugar à janela que se pode 
tocar, trocar 
shoegaze por shegaze
para fitar
as estrelas, a química no ar
de semáforos incandescentes
que fazem ligaduras tipográficas
com ossos-letreiros-fontes-artérias -
remendadas sob um barroco dos danificados -
numa só corporação de conexão coral
cantando(-me a ti em mim) hipnagógica 
"dorme bem"; "vemo-nos amanhã".
 
Fluxo refluxo, o dia branco retorna 
com a sensação recíproca de que
"não posso fazer mudar o tempo para ti".
Di-lo a função de ter de a haver,
onde toda a gente quer ser encontrada
por detrás de apartamentos, aborrecimentos,
como cada janela de suíte uma
mónada a enquadrar, espelhar
miríades de janelas, o universo inteiro
à medida de prédios que reproduzem
um presente grávido de vazios.
Ninguém sozinho em estar sozinho,
sempre o mesmo, mas entre tantos,
dois seres humanos esfolados,
belos e quebrados, turistas
na Terra cuja cara faz
escala em situações mentais simétricas.
Ritmo lento, a cabeça de um
repousada no ombro do outro e...

Eis que na lonjura
(o cheiro a sintetizadores)
se começa a adivinhar
o fim do desapontamento, os desentendimentos
zero... e uns no simulacro de 
cordas que tilintam quais gotas de xilofone,
arpejos pentatónicos a saltar cristalinos
entre noites de Tokyo e foge,
quando o escuro chega.
Mais com ele, o senso automático de que 
"eu posso fazer mudar o tempo para ti".
Di-lo o silêncio recíproco de
écfrases reversas, 
pinturas prescrições perfeitas,
para quê conversas?
"Se a beleza está nos olhos de quem te vê".   
E tudo se passa como se pudessem
comprar um indulto da alienação
ao viver
um best of, montagem de cenas preferidas.

Porque vem, vai e alta voltagem!
A ignificar até
Lágrimas de vídeo em explosão! 
do céu mirtilo em laranja, menta, morango,
montras, marcas, logos, slogans!
Excessos de informação comestíveis e 
já nem saber como descrever que
todos os vectores vão dar a croma
ali onde ela agarra a mão dele e o guia,
correm
por casinos, arcades
karaokes, shoppings, estações de metro
sinaptizando os pontos num
não-lugar a saber a casa.
Preenchem as lacunas com sonhos,
tiram bilhetes para Marte,
cambaleiam por escadarias em cochilos digitais:
ele, ela, elã rua fora cada vez mais adentro
do mistério e este senso premente
como estrelas atónitas a perceberem
o aqui e agora
do que só acontece uma vez na vida
o milagre fugaz desta grande escapada.

Flutuam:
espectaculares, receptaculares;
perdidos e encontrados no oceanário
urbano observatório porque, celofane,
podem ver-se através um do outro
halo blindado para o resto
em jeito de quase amantes que só
se tocam à beira de precipícios
tímidos como pontas dos pés. 
E no topo, por mais que anestesia biónica
e psicofónicos e hiperbólicos
eles sabem:
o tempo está a mudar,
mas porque...
a manhã vai chegar.

Diz adeus na parada da rua quieta
tanto quanto cheia, 
dois corpos plantados no meio
dos passantes em Shinjuku
enevoada, desfocada e
cada um deles tornado para o outro
a multidão que não conseguem ver.  
Tal como mel, encharcados de reverb,
o néon ainda 
lhes escorrendo pelas caras como
maquilhagem de Deus.
Sussurram um vapor que só o ouvido conhece e
descoreografam-se.

***

Entrementes eu... tento adivinhar
a minha promessa deles:
"Puxamos o filme para trás e voltamos a ver
(VHS em streaming, um anúncio em loop)
1983 ou 2003,
o futuro conforme ele era para ser
quando tinhas 18 anos numa sexta à noite
e a cidade um santuário
onde as chances a antecipação a fé!
invencível de que tudo podia acontecer
nem que fosse...
(desfibrilhando o glitch, o granulado)
encontrar-te numa sala de cinema
em que o tempo mudara para templo
e ficamos
anacrónicos, mas crónicos".

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